A condição quase clandestina, de um dos mais fascinantes percursos da poesia portuguesa actual, permanece como um testemunho da exigência a que ele nos transporta. Será, certamente, necessário abdicar das vias-rápidas dominantes, e tomar o endereço de caminhos secundários, de pacientes estradas que olham a distância sem a pretensão de anulá-la, entre velhas paredes de pedra e sombra, pelo serpenteado dos campos. Ou tomar retirados itinerários pedestres, atalhos que se diriam submersos na crosta da terra, na solidão de passagens, no desarmado abandono dos vestígios, se quisermos seguir os rastros de um poeta que jamais teve, por exemplo, automóvel ou carta de condução.
Também nisso, o peremptório contrariar da velocidade. Que depois se encontra disseminado por toda a parte: no modo acurado e contínuo como dialoga com a tradição (dos grandes poetas gregos e latinos a Dante, dos renascentistas e barrocos aos românticos e a algumas das vozes maiores do século XX); nos motivos que sutura à maneira de uma arte de regresso, pois, na verdade, «Nunca finda o respigo»(p.125); no desenho narrativo do versos; no apuramento incessante do poema, com variações significativas de edição para edição, como se poderá aqui comprovar; na intencionalidade poética que se revê em títulos tão despojados como 'Silabário' e 'Alguns motetos'.
Este chamamento a uma travessia paciente adensa-se se considerarmos que a paisagem proposta não é a da invenção, mas também não é exactamente a da repetição. De facto, o espaço a que se alude é, quase sempre, aquele de cujo reconhecimento somos capazes, pois o trazemos inscrito. Seja o espaço do mundo («Teus olhos sobem esse monte, pairam no alto,/ visitam umas pedras já suas íntimas», p.9), o espaço vital da alteridade («E ao retrocedermos para recuperar/ esses que, de tão nossos...», p.51), o espaço do sujeito («Não te levo pela mão, tu és eu próprio,/ frágil vestígio...», p.83) ou o do próprio poema («Um lugar e uma data a situar um poema/ achado num papel que a memória explusara», p.13). Mas este retorno mais do que repetência, constitui uma espécie de restituição, pois, no cerne interrogante do poema, os particulares da vida aparecem à consciência como um desvelamento ontológico. Não se congeminam revelações absolutas, minúcias ou assombros. Não se interrompe nem transforma o fluir do tempo. Desperta-se simplesmente a vibração de uma pergunta, por vezes, incrivelmente comum e ainda assim (ou sobretudo assim) propagadora do sentido: «Porque voltaste?/ Esqueceste alguma coisa?» (p.78).
Há como que um pudor, um exercício permanente de contenção, uma sobriedade, mesmo se não isenta das feridas provocadas pelo «punhal diáfano»(p.16) de semelhante silêncio. A poesia de José Bento tem a respiração e a intensidade de uma disciplina espiritual. Nunca nos convoca apenas a uma viagem, uma evocação, um casual gesto:
«Entre o denso ramo em flor
e o chão laborado
por sua sombra
respira-se a fundura
que une um monte a outro monte» (p.129).
«Respira-se a fundura» - podia divisar-se assim o motivo da sua oficina. A natureza interrogante que, para ele, é a da poesia avizinha-nos da «fundura», do mistério imerso que respira. E mais não se diz, pois por via apofática nos orienta, quando nos avisa que nos é «vedado saber/ mesmo após as perguntas mais hábeis»(p.33); ou «Mais não pergunto, porque nada sei» (p.12); e «O vento e os salgueiros/ Tudo ignoram:/ ampliam/ a pulsação das águas» (p.131).
A obra de José Bento afigura-se uma poesia da memória («A idade não nos despoja,/ cumula-nos...», p.130), mas sem pretender daí extraír um conhecimento ordenador ou judicativo, ou uma qualquer provisão sapiencial. A memória é antes uma forma de hospitalidade, um dispositivo que coloca a falar, desprotegidas, as próprias coisas. Lembrava já Benjamin que nenhum facto é, por si mesmo, histórico. «Tornar-se-á apenas depois, postumamente, em seguida a acontecimentos de que podem estar separados por milénios» . Assim, não há lugar para uma triagem categorial dos referentes. Tal como a rede escatológica de que fala o evangelista nas parábolas do Reino, «apanha-se de tudo»: um passeio pelo campo, a entrada num jardim, uma estadia noutra cidade, a recordação da casa da infância ou do cemitério do povoado, a usurpação do espaço urbano «pela avidez de edifícios formulados pela regra do juro» (p.29), três ou quatro cavalos em Churdínaga, o receber e o dedicar de um livro, o encontro com um poema julgado perdido e com o corpo amado.
Cedo percebemos, por essa espécie de hiato na temporalidade gerado pela interpelação, equivalente à experiência de ter «mergulhado/ os braços no coração de um astro vivo» (p.22), que a memória é memória de um desejo e que o desejo floresce sobre o íntegro silêncio. O desiderante é aquele que suplica abrigo no coração da transcendência misteriosa. E o seu gozo (porque foi também esse seu martírio), como ensina Santo Agostinho, brota da união íntima ao que ama não já por causa da sua carência, mas por ele mesmo . A resposta poética ao silêncio, a que não tenta determiná-lo, nem circunscrevê-lo, instaura, deste modo, uma misteriosa possibilidade: a de o silêncio falar a sua própria língua.
Embora de forma analógica, talvez se possa recorrer àquilo que Giorgio Agamben diz da relação entre estilo e maneira, dois pólos «em cuja tensão vive o gesto livre do escritor: o estilo é uma apropriação desapropriante (uma negligência sublime, um esquecer-se de si naquilo que lhe pertence), a maneira uma desapropriação apropriante, um pressentir-se ou recordar-se de si no impróprio» . Se o silêncio vivo foi buscado através do estilo, que em última análise constitui um apagamento de si no próprio ser linguístico, o encontro dá-se nessa outra forma de apagamento («Há que descer, ninguém nos diz onde. Até ser-se mendigo», p.58: contraditória, escandalosa forma de apagamento), representada pela descoberta da sua fala numa língua que não é sua: a língua do silêncio.