A boa sociedade, na morte de um poeta a cuja palavra não conseguiu de todo fugir, tem por costume manifestar-se em voz alta. Ele é parabéns retroactivos pela obra, ele é pêsames pela dissipação, intempestiva, de uma fonte geradora de património artístico, ele é um esforço de integração da pessoa num exemplo de qualquer coisa, cívica e digna, e da obra numa colecção de pingentes histórico-decorativos. O que em vida resistiu a apropriação talvez na morte se revele mais cedente. Uma espécie de tentativa in extremis para especialistas em não perder oportunidades. Do tipo: «Talvez agora a coisa seja mais amoldável. Vamos fazer um museu.»
Por mim, desejo acreditar que a vida e obra de um poeta são, de facto, riqueza para o mundo, que estão ali para quem queira cuidar da atenção que convocam. Mas é uma riqueza que não é daqui, que em boa medida se faz de resistência amorosa ao aqui e agora. Uma resistência sinal de um alto amor, porque a beleza de tudo merecia de nós outra delicadeza.
A Mário Cesariny, agradeço o quanto as suas palavras me destroem, a ironia inquebrantável que previne que o que é revelação se torne simulação.
O poeta cai pela segunda vez
O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
mas buscava uma estrela, talvez a salvação.
O poeta era sinceríssimo, honesto, total.
Raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões
E agora o poeta começou a rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
já riu de si-mesmo, de se ter suicidado
de ter tido diarreia de não pedir dinheiro
o poeta viu chegar a orquestra dos silêncios
primeiro quis só ouvir depois teve que olhar
depois comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro
mas é inevitável é um bem é uma dádiva.
Tirai-lhe agora os versos que ele próprio despreza
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona
caçai-o entre a multidão
crucificai-o de novo mas com mais requinte.
Subsistirá. É maior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução
o poeta
O POETA
O POETA
destrói-vos.
(Mário Cesariny, in "Burlescas, teóricas e sentimentais"