1.
O culto, não esgotando a relação religiosa, constitui a epifania por antonomásia das religiões: nos ritos, em tempos e lugares sagrados, exprime a relação divindade-homem. Dimensão essencial do homem (homo religiosus naturaliter), o culto interpreta formas concretas universalmente semelhantes (oração, sacrifício, festas, templos, etc.), mas, porque determinadas pela cultura e pelo conteúdo, de expressão diversa (nas grandes religiões: cristianismo, islão, budismo, judaísmo, etc.; e mesmo dentro de cada uma, como p.e., nas liturgias cristãs: ambrosiana, copta, galicana, hispânica, ortodoxa, romana, siríaca, etc.). Implícita na noção de culto está a relação sagrado-profano, que compreende a dinâmica culto-vida em termos dialécticos e não dualísticos.
De comum raiz etimológica (cultus, us / cultura, ae), o conceito de “cultura” deve procurar-se no contexto do nascimento da antropologia cultural e da etnologia. A sua nova elaboração assinala o fim do mito eurocêntrico, porque diversa da apresentada pela tradição clássica e humanística (saber lógico-racional, que excluía o saber emocional-ético-praxológico). Ainda que diversas as definições de “cultura” (os estudiosos elaboraram mais de cem), o novo conceito compreende, pelo menos, os seguintes elementos, sintetizados por C. Di Sante: o cultural é antropogenético, antropofânico, mais do que o racional e sempre estrutural; não se opõe ao natural nem é unívoco; pode tornar-se manipulador, dependendo da forma de distribuição do poder.
2.
Mais que do culto em geral, passemos à relação entre liturgia (romana) e cultura, que se apresenta vária e complexa. E muitas são as possibilidades de reflecti-la. C. Di Sante, ao aprofundá-la, resume os «momentos irrenunciáveis»: a liturgia integra a cultura e aporta-lhe algo de específico; está exposta ao perigo da manipulação como todos os fenómenos culturais; tem necessidade de uma teoria explicativa e interpretativa; é culturalmente adequada quando, sem se adaptar às exigências da cultura vigente, respeita a sua estrutura comunicativa e, em diálogo com ela, critica a sua lógica contrária aos valores fraterno-conviviais e evangélicos. Mais: deve estudar-se a dialéctica constante e inteligente entre ambas, que sempre existe e deve subsistir, pois pode tornar-se útil, em termos teóricos e pastorais, para a renovação litúrgica.
A história da liturgia mostra o desenvolvimento desta relação. Até ao édito de Milão a Igreja faz opções culturais, mediadas pelo mistério de Cristo: reinterpreta ritos judaicos, abre-se às culturas dos gentios sem aceitar o paganismo, elabora uma linguagem assimilando vocabulário técnico. Nascem e desenvolvem-se as famílias litúrgicas. Já no período que vai até à reforma carolíngia, apesar da grande criatividade litúrgica e vitalidade cultural, nota-se que a Igreja enfraquece os critérios na assimilação, reinterpretação e substituição das formas culturais do império e do paganismo. No séc. VIII começa a delinear-se a cultura litúrgica da uniformidade, tornando sempre mais difícil a relação entre liturgia e cultura. A instrumentalização política da liturgia na reforma carolíngia e a uniformidade promovida nas reformas gregoriana, da Cúria romana e do Concílio de Trento tiveram profundas consequências do ponto de vista cultural: a adaptação da liturgia romana ao génio franco-germânico, a supressão da liturgia hispânica e, mais tarde, das consuetudines com menos de 200 anos. Nos períodos sucessivos o panorama não melhora: no barroco, a liturgia cede às pressões da cultura religiosa do tempo; durante o iluminismo, são inconsequentes as tentativas de restauração das liturgias galicanas e das reformas de Pistóia e Ems; na restauração, volta-se ao ancien régime. Só com o movimento litúrgico se avança no sentido em que constituição litúrgica do Vaticano II propôs a adaptação litúrgica.
3.
Os nn. 37-40 da Sacrosanctum Concilium, que devem ser lidos no contexto dos nn. 23 e 34, contêm as normas para a adaptação da liturgia romana à cultura e tradições dos povos. O n. 37, inspirado na carta encíclica de Pio XII, Summi Pontificatus, estabelece o princípio geral: «Não é desejo da Igreja impor, nem mesmo na Liturgia, a não ser quando está em causa a fé e o bem de toda a comunidade, uma forma única e rígida, mas respeitar e procurar desenvolver as qualidades e dotes de espírito das várias raças e povos». O património cultural dos povos pode ser aceite na sua liturgia. Há, todavia, que observar um conjunto de critérios (negativos): não pôr em causa a unidade da fé, não subtrair o bem da comunidade, não haver ligações a erros ou superstições; e (positivos): obedecer à lei do desenvolvimento orgânico, partir do enraizamento bíblico, ter dimensão eclesial, responder à necessidade pastoral, realizar-se com clareza, simplicidade e sobriedade. Princípio geral que é concretizado nos nn. 38-39, onde se determina a manutenção da unidade substancial do rito romano, ou seja, dentro âmbito dos livros litúrgicos oficiais, e se menciona a autoridade competente. O n. 40 refere-se aos casos de adaptação mais profunda, fora do âmbito dos livros. Destas normas podem individuar-se três processos distintos de adaptação litúrgica, que variam conforme a índole, o grau, o âmbito e a autoridade competente: 1.acomodação (das assembleias, tempos e lugares particulares); 2. aculturação (enriquecimento do rito romano com novos elementos culturais); 3. inculturação (metanóia de ritos pré-cristãos).
A instrução «A liturgia romana e a inculturação» tinha como principal finalidade definir as normas gerais para a aplicação dos nn. 37-40 da Sacrosanctum Concilium. Há, no entanto, uma mudança de vocabulário: a instrução prefere falar de «inculturação» em vez de «adaptação». A razão é simples: «A palavra «adaptação», tirada da linguagem missionária, poderia levar a pensar em modificações, sobretudo pontuais e exteriores. O termo «inculturação» pode exprimir melhor um duplo movimento: ‘Com a inculturação, a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e, ao mesmo tempo, introduz os povos com as suas culturas na própria comunidade’» (n. 4). Quatro são as partes da instrução: 1. processo histórico; 2. exigências e condições prévias; 3. princípios e normas práticas; 4. âmbitos das adaptações.
4.
No seguimento do n. 30 da instrução, a Igreja tem de estar atenta às orientações culturais que hoje mais influem na liturgia. C. Di Sante pensa que elas se podem reduzir a três: 1. A viragem antropológica, que se faz perceber na liturgia com a necessidade de dar maior espaço ao homem. É neste sentido que A. N. Terrin observa: «a celebração litúrgica (…) jamais é facto teologicamente puro, pelo qual, partindo do homem que celebra a liturgia, será preciso levar em conta elementos biológico-ecológicos, necessidades individuais e sociais, situações históricas, contextos culturais omniabrangentes e ideológicos que se encontrarão mais ou menos velados na própria liturgia ou que, mesmo admitida a pureza do dado litúrgico, o homem projectará instintivamente na liturgia, encontrando o que pretende procurar». 2. A consciência histórica, que se reflecte na liturgia: superação da antiga concepção da eficácia dos sacramentos por outra mais apropriada, relativização de certas formas litúrgicas e necessidade da criatividade litúrgica, exigência da aculturação e inculturação litúrgicas. 3. A mentalidade científica, que, apesar de tudo, continua a influir positivamente na liturgia: na desconfiança do ritualismo mágico, na sensibilidade ao poético-evocativo, na compreensão dos dois níveis do discurso (o fenómeno cultual enquanto praxis - liturgia - e sua compreensão - meta-liturgia).
5.
A. Bergamini, reflectindo a situação actual, diz que «o fenómeno da crise do culto e da liturgia deve ser explicado no contexto de uma crise bastante mais vasta: a crise que compreende a relação Deus-homem e, por consequência, aquela da Igreja-mundo». A superação da crise passa pelo fenómeno, igualmente vasto, da adaptação da Igreja, no qual se há-de inscrever a inculturação litúrgica. O problema é complexo e exige grande capacidade de avaliação crítica da cultura e uma profunda teologia litúrgica da parte de quem tem responsabilidade na sua resolução.