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Representações do sagrado e liberdade de expressão

A recente polémica em torno das caricaturas de Maomé voltou a colocar ao Ocidente uma dúvida sempre delicada: numa sociedade laica, como conciliar a total liberdade de expressão com o total respeito pelo sagrado? Ou de uma forma mais crua: em democracia, a religião pode impor limites à liberdade?

A resposta da maioria dos dirigentes políticos e religiosos ocidentais, independentemente de crenças ou descrenças, foi apelar ao bom senso. Mas esta resposta a nada responde, porque o bom senso não se legisla nem se decreta. E a experiência demonstra que é suficientemente elástico para que alguns, em seu nome, concedam ao Islão uma reverência que nunca teriam pelo Cristianismo.

Significa isto que o único direito verdadeiramente democrático seja (assim chegou a dizer-se entre nós) o “direito à blasfémia”? De modo nenhum. Em certo sentido, a blasfémia é também um atentado à liberdade dos crentes, como o é um insulto racista para as pessoas de cor ou uma piada anti-semita para os judeus. Nos três casos, ataca-se a legítima “exigência de reconhecimento” de uma comunidade, para usar o conceito do filósofo canadiano Charles Taylor que fundamenta a sua defesa do multiculturalismo.

Será possível, então, arbitrar um tão radical conflito de direitos?

Não. Como muitos outros conflitos de direitos, também este é irresolúvel. Onde há qualquer forma de representação do sagrado, e ao longo da história nenhuma cultura ignorou o fenómeno religioso, existe a possibilidade dialéctica de blasfemar. Uma cultura que jamais desrespeitasse os símbolos do sagrado, hipótese meramente académica, seria talvez uma cultura sem símbolos do sagrado. A blasfémia é a outra face do sagrado. E a outra face, diz o Evangelho, torna-se por vezes objecto de violência.

Na verdade, quase podemos distinguir as sociedades pela forma - muito variável e sempre objecto de compromisso - como regulam essa violência. Mesmo na Europa medieval, onde o Cristianismo tinha um peso maioritário, a inquisição convivia com a mais desbragada sátira anticlerical. Será a apropriação dos tribunais de consciência pelos Estados (primeiro os católicos e depois os protestantes) a mudar as coisas. Colocando ao serviço da unidade religiosa os cada vez maiores recursos das burocracias nacionais, a modernidade vai tentar resolver definitivamente a tensão entre liberdade individual e fé colectiva. Em vão. Porque, ao mesmo tempo, o Ocidente seculariza-se profundamente, conhecendo aquilo a que Max Weber chamou “o desencantamento do mundo”.

O que não ajuda a resolver o dilema, muito pelo contrário. A perda do sentido religioso na nossa civilização, em contraste com o mundo islâmico, leva a que o caso das caricaturas seja visto sob uma óptica muito diferente dos dois lados do Mediterrâneo. Para o Islão, que não permite a representação de Alá e Maomé excepto pela palavra, as caricaturas são uma ofensa gravíssima. Para o Ocidente, que há dois mil anos representa Deus sob os traços de um crucificado ou de uma criança, as caricaturas são um mal menor.

Não quer dizer que nós tenhamos razão e eles não. Mas, se hoje os crentes são obrigados a tolerar um certo desrespeito pelos seus símbolos mais sagrados, isso deve--se a uma consciência em certos aspectos mais viva da liberdade por parte dos não crentes. Uma liberdade que os cristãos apenas têm de pedir também para si.


 

Pedro Picoito
Historiador, ISEC
In Observatório da Cultura 6
Atualizado (mudança de grafismo da página) em 17.10.2023

 

 
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