O novo filme de Martins Scorsese, “Assassinos da lua das flores”, inspira-se numa história verdadeira, mas sobretudo é uma verdadeira história (…), detalhe que conta mais. O filme, portanto, narra uma verdadeira história, ou seja, rica de humanidade, de sentido, e por isso aberta à esperança, apesar de ser um dos filmes mais tristes e dolorosos das últimas décadas.
Os acontecimentos ocorrem em Fairfax, no Oklahoma dos anos 20: os nativos da Nação Osage descobrem que debaixo da terra que possuem há muito petróleo, e esta descoberta torna-os desde logo o povo mais rico e também mais triste e frágil do mundo, exposto a toda a espécie de adversidade. Com efeito, desencadeia-se repentinamente a corrida ao ouro negro, filha de uma das mais poderosas divindades deste mundo, a avidez ou, para citar outro grande filme de 1924, a rapacidade (“Greed”), realizado por Erich von Stroheim.
A pedra angular do filme de Scorsese é esta: a mísera épica da avidez humana. Em conjunto e contraposta a ela, o espetador assiste igualmente à grandiosa épica da dor. Porque Scorsese recorda-nos que não existe nada, das coisas humanas, de mais sagrado do que a dor. A sacralidade da dor é o peso que está no outro prato da balança a reequilibrar o enorme rochedo da avidez, que parece fazê-la de senhoria durante toda a história.
Se a moldura é feita destas duas “cores”, a pintuta é impelida pelas ações dos três protagonistas: William K. Hale, Ernest Burkhart e Mollie. O primeiro (Roberto de Niro) é o lobo-latifundiário, obviamente travestido de cordeiro, movido por uma rapacidade inextinguível que contagiará o jovem sobrinho Ernest, magistralmente interpretado por Leonardo Di Caprio. Ambos são os assassinos de que fala o título, enquanto Mollie, uma Lily Gladstone entre as favoritas ao Óscar, é uma das “flores da lua” , a vítima predestinada, a mulher da dor, a nativa milionária, para sua desfortuna.
O tio Bill incitará o sobrinho primeiro a casar e depois a tentar matar a jovem Molly para lhe herdar a fortuna, mas algo vai opor-se ao seu astuto plano criminoso. Se William e Molly são os dois polos opostos, quase duas hipóstases do mal e do bem, o personagem mais interessante é Ernest, o homem verdadeiro, que se debate entre os dois, enre a avidez e o amor.
Ernest é interessante precisamente porque é “cinzento”, rico de cambiantes que parecem escapar até a ele próprio, que aparece como homem frágil, confuso e instintivo, e sobretudo manipulável. O arco narrativo da sua parábola recorda de perto a de Henri Hill, o jovem protagonista de uma outra obra-prima de Martin Scorsese, “Tudo bons rapazes”, de 1990. Henri, como Ernest, tem um tutor, um “tio”, também interpretado por De Niro, que o induz, de tentação em tentação, no caminho do crime, até chegar a um ponto tão extremo, onde parece ter-se perdido qualquer traço de humanidade, em que qualquer coisa dentro do jovem se estilhaça, e então acontece a rebelião, mais por sobrevivência do que por dignidade, um pouco como o filho pródigo, em relação ao tutor-pai-dono.
Os dois, Ernest e William, representam de maneira incisiva aquela diferença que muitas vezes o papa Francisco indicou quando fala de pecadores e de corruptos, sublinhando-lhes a diferença. Falou disso recentemente, no Angelus de 1 de outubro, quando afirmou que «para o pecador há sempre uma esperança de redenção; para o corrupto, porém, é muito mais difícil. De facto, os seus falsos “sins”, as suas aparências elegantes mas hipócritas e os seus fingimentos que se tornaram hábitos são como uma espessa “parede de borracha”, atrás da qual ele se protege das chamadas de consciência. E estes hipócritas fazem tanto mal! Irmãos e irmãs, pecadores sim - todos o somos -, corruptos não! Pecadores sim, corruptos não!».
Di Caprio é o homem pecador, De Niro é o corrupto. O pecador cai mas pode ainda levantar-se, a sua vida é um debater-se por causa de uma fragilidade que não o abandona e o impede de elevar-se. Os corruptos, ao invés, deram um “salto de qualidade” no caminho do mal: são pessoas que se fecharam a toda a possibilidade de resgate, de despertar da sua consciência que deixou de se inquietar. Começaram a chamar “bem” ao “mal” e estão convencidos de que se comportam honestamente, apesar de cometerem todas as iniquidades possíveis. São hipócritas que mentem a eles próprios e aos outros, e acabam por acreditar nas suas próprias mentiras. Lobos vestidos de cordeiros. Tendo extinguido a voz da consciência, tornam-se insensíveis inclusive às intervenções da Graça, que bem pouco pode fazer por eles. Pensar-se-ia que ao tornarem-se corruptos cometem aquela blasfémia contra o Espírito que, segundo o Evangelho, é o ´´único pecado verdadeiramente imperdoável.
Ao ver o doloroso filme de Scorsese, que abre e encerra com um olhar sobre a natureza, sobre as “flores de lua” assassinadas, compreende-se a terrível vertigem que brota da constatação da possibilidade de cometer esse pecado que «não será perdoado nem neste mundo nem no futuro» (Mateus 12, 33).