«O primeiro vivente era semelhante a um leão, o segundo vivente tinha o aspeto de um jovem touro, o terceiro vivente tinha o aspeto de um homem, o quarto vivente era semelhante a uma águia em voo.» O que João narra no Apocalipse pode admirar-se em Barcelona, desde 12 de novembro, quando foram iluminadas pela primeira vez as torres da Sagrada Família dedicadas aos santos evangelistas.
Quatro altas torres, «uma imensa mole de matéria, fruto da natureza e de um esforço incalculável da inteligência humana, construtora desta obra de arte», como declarou Bento XVI ao dedicar a basílica. Um sinal visível do Deus invisível, a cuja glória se erguem estas torres, flechas que apontam para o absoluto da luz e daquele que é a Luz, Ele que é a própria alteza e beleza.
A bênção das torres foi precedida por uma missa presidida pelo núncio apostólico em Espanha, D. Bernardito Auza. Na homilia, depois de ter concedido a bênção apostólica aos operários, arquitetos e artistas, afirmou que «Deus atua connosco de uma forma semelhante à do arquiteto com as pedras. Coloca cada um num lugar e permite-nos descobrir o sentido desse lugar. Tu encontra-lo quando descobres que o teu destino é o próprio Deus, a sua glória. Isso foi o que descobriu o Servo de Deus Antoni Gaudí». Durante a missa a assembleia rezou para que os arquitetos e as pessoas encarregadas de prosseguir a obra de Gaudí fossem fiéis ao projeto inspirado.
Após a Eucaristia o núncio saiu da basílica com o arcebispo de Barcelona, Card. Juan José Omella, e abençoou as torres dedicadas aos quatro evangelistas, que «em harmoniosa sintonia são concordes e, em uníssono, evocam a presença de Cristo».
Muitas pessoas em torno à igreja, todos os olhares dirigidos para o alto, e os quatro “viventes” a olhar para o povo. «Numa conexão visual», referiu o artista artífice das figuras, Xavier Medina Campeny, o escultor barcelonês chamado a coroar as torres com as figuras aladas do touro, do leão, da águia e do homem.
Há várias estátuas da sua autoria nas praças da cidade, com corpos e animais intersetados por figuras geométricas. Talvez tenha sido a razão pela qual foi selecionado: o projeto dos pináculos prevê que sejam uma composição de formas geométricas e figurativas.
«Não sei porque me escolheram. Inicialmente nem estava muito certo de aceitar o encargo. Havia muitos condicionamentos. Não foi fácil. Devia ter de colaborar com os arquitetos para estátuas que deviam ser vistas a 130 metros de altura. Mas foi um processo muito longo, iniciado em 2014. O tempo permitiu que as figuras amadurecessem», explicou o artista.
As quatro formas numa confere a unidade que manifestam os construtores da Sagrada Família quando evidenciam licam como trabalharam juntos para estas torres. «As várias figuras evoluíram ao longo do tempo também graças a encontros», assinala o diretor do estaleiro da Sagrada Família, Jordi Faulí.
«Por exemplo, no início do projeto Medina Campeny expressou o desejo de falar com um sacerdote teólogo seu conhecido, Josep Maria Rovira Belloso (1926-2018). Desejava compreender o significado de cada figura. Era importante, e por isso filmámos o encontro. Moveu-nos sempre o desejo de continuar a construir baseando-nos em critérios que Gaudí aplicou aos outros pináculos», acrescentou o responsável.
As fachadas da Natividade e da Paixão, explicou Faulí, «têm os terminais brancos e criam figuras a partir de geometrias, como fazemos agora nós no “tetramorfo” [as quatro figuras que representam os evangelistas]. O encontro dos materiais também foi uma prova importante: as asas são de cimento e as figuras são de mármore branco de Thassos, na Grécia. Isto implicou alguma dificuldade de execução. Mas fomos afortunados porque pudemos contar com técnicos e pedreiros muito hábeis e capacitados». Constrói-se em conjunto, cada material colabora para transformar a terra em templo.
«O momento no qual tive a certeza de que se estava a fazer um bom trabalho foi quando preparámos um vídeo para explicar o nosso trabalho aos visitantes, e pela primeira vez vi uma imagem do conjunto, de todas as quatro figuras. Foi há quatro anos», disse Faulí.
Uma obra de arte, sublinha Medina Campeny, só existe quando alguém a vê. Na Sagrada Família muitíssimos são os olhos que veem, dando uma sensação de vertigem ao artista. «A coisa que distingue fazer a escultura de uma águia da representação de João e do seu Evangelho é que estás a representar o olhar de Deus, o amor. Pensava para mim que deveria fazer a melhor águia que pudesse. No fim o tempo ajudou a que se chegasse a esta.» O tempo, tema que o núncio valorizou na sua homilia, salientando que para quem trabalha na Sagrada Família não é um inimigo, mas a via para a eternidade.
A bênção foi transmitida pelas televisões locais. Faulí confessa que «um dos momentos mais belos foi escutar as entrevistas que os jornalistas fizeram às pessoas reunidas fora da Sagrada Família. Estavam contentes, diziam que lhes agradava ver estas novas torres no céu de Barcelona, que eram belas e que se sentiam “ajudadas”. Creio que a arte sacra é isto: o facto de as pessoas poderem reconhecê-la como alguma coisa que lhes pertence, que lhes corresponde, que as representa, que toca o seu coração».
O escultor referiu que no terraço do edifício onde reside se avista a Sagrada Família: «Às vezes vou contemplá-la de lá. Dá-me alegria». Bento XVI, na missa da dedicação, explicou-o com estas palavras: «A beleza é a grande necessidade do ser humano; é a raiz da qual brotam o tronco da nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convida à liberdade e arranca do egoísmo».
Os olhares das milhares de pessoas que a cada dia erguem os olhos ao céu para admirar a Sagrada Família reconhecem que o destino da sua vida não é a lama e o pó, mas a possibilidade de serem uma pedra que se ergue ao céu. O poeta Joan Maragall, amigo íntimo de Gaudí, cantava a Sagrada Família comparando-a a uma flor gigante cujo jardineiro é Cristo ressuscitado. Uma flor que cresce como o novo Éden, onde as pedras se fazem síntese de toda a criação, na expetativa de ver o seu cumprimento. A águia, o touro, o jovem e o leão convidam cada pessoa a não se dissolver no mundo, e a não dissolver o mundo, mas a cultiva-lo.
De acordo com o jornal “La Vanguardia”, as obras concentram-se a partir de agora na torre de Jesus, a mais alta, com a conclusão prevista para 2026. Espera-se que o conjunto da basílica esteja pronto em 2033, 150 anos depois de Gaudí ter assumido o projeto.