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Música e espiritualidade para este tempo: "Beatitudes", "Hinário para um tempo de confiança"

O Ensemble São Tomás de Aquino regressou a 5 de junho à sua temporada de concertos, com a estreia de «Hinário para um tempo de confiança», de Alfredo Teixeira, sobre textos de Frei José Augusto Mourão, concerto que incluiu a apresentação da obra «The Beatitudes» de Arvo Pärt, raramente interpretada em Portugal.

The Beatitudes, para coro misto (ou solistas) e órgão, obra composta em 1990 (revista em 1991), resulta de uma encomenda da estação de rádio RIAS, de Berlim, ao compositor estoniano Arvo Pärt (1935-). A sua estreia aconteceu a 25 de maio de 1990, em Berlim (Nathanielkirche), com a participação do ensemble Theatre of Voices e o organista Christopher Bowers-Broadbent, sob a direção de Paul Hillier. A obra tem a particularidade de ser uma das primeiras em que o compositor trabalha sobre a língua inglesa. Este aspeto é importante, na medida em que os processos de composição de Arvo Pärt têm uma forte correlação com as estruturas da língua. A composição é baseada numa secção do chamado «Discurso da Montanha», no Evangelho de Mateus (5:3-12).

O canto é rigorosamente silábico. Cada elemento frásico, dividido por um sinal de pontuação, é enunciado num campo harmónico diferente do anterior, separado por uma grande pausa. Este processo acentua o caráter meditativo desta leitura de um dos textos matriciais do património espiritual da nossa cultura.

A obra recria o estilo Tintinnabulum (pequeno sino), que organizou o seu regresso à composição depois de um período de silêncio entre 1968 e 1976. Trata-se de um particular cruzamento entre as técnicas de cantilação de origem judaica e cristã e as formas mais arcaicas de contraponto. Em The Beatitudes, cada um dos elementos frásicos obedece a uma estrutura rigorosa de progressão, numa via de ascensão, até à secção disruptiva que, no órgão, culmina este itinerário. A sequência harmónica antes cantada é, nesta cláusula, recapitulada, numa navegação inversa que nos conduz ao ponto de partida. Arvo Pärt interpreta, assim, a mensagem central do texto cristão, enquanto tensão entre promessa e realização, entre origem e destino – mas uma tensão reconciliada. The Beatitudes apresenta-se, por um lado, como uma obra firmemente ancorada na narrativa de uma tradição (o evangelho cristão), por outro, aberta à universalidade da experiência humana, transcrita num movimento ascensional de impulso e repouso, que ouvimos como leis fundamentais do universo. Numa entrevista publicada em 2010, Arvo Pärt comenta, desde modo, a presença dos textos bíblicos e litúrgicos na sua obra: «na medida em que estão ligados a verdades universais, estes textos estão próximos da verdade íntima, da pureza, da beleza, do núcleo ideal ao qual se liga cada ser humano».



O trabalho composicional depende estruturalmente do material literário, procurando os microclimas que favoreçam o encontro com a palavra, instalando-a numa temporalidade própria. As vias podem ser múltiplas



A obra "Hinário para um tempo de confiança" resulta do trabalho continuado de Alfredo Teixeira (1965-) sobre a poesia litúrgica de Frei José Augusto Mourão (1947-2011). Celebrando a singularidade da sua teopoética, a estreia deste fresco musical assinala o décimo aniversário da sua morte, ocorrido no passado 5 de maio. José Augusto Mourão é o protagonista de um inovador trabalho de criação de uma nova textualidade para a liturgia. Trata-se de uma palavra enraizada nos ritos cristãos, mas crítica de uma liturgia que fosse a «mesmice de um tempo homogéneo», ou o «espaço achatado avesso ao imprevisto».

Para este dominicano, a transfiguração é o fulcro da operação ritual genuinamente cristã, como o assinala num poema seminal: «Venha o teu anjo / como raio que atravessa o vitral / e não o quebra / e o transfigura». É essa via de transfiguração que habita o programa musical que reúne estes seis hinos. Procura-se o espírito da liturgia, mas num outro contexto, próximo da figura do «concerto espiritual», que se divulgou nas práticas musicais das reformas protestante e católica, a partir do século XVI. O artista plástico Paul Thek (1933-1988) criou um projeto que intitulou:Art is Liturgy. Nessa experimentação, a arte, na sua capacidade de transfiguração, é pensada nas suas afinidades com a espiritualidade litúrgica. O Hinário de Alfredo Teixeira ensaia uma leitura inversa – Liturgy is Art –, uma vez que, neste caso, a poesia de José Augusto Mourão, nascida na liturgia cristã, se oferece, como acontecimento artístico e lugar de hospitalidade, a todos os buscam uma significação espiritual do mundo - «o fazer do mundo a vir».

O idioma musical está fortemente marcado pela dicção poética. Por isso, cada hino é um programa. O trabalho composicional depende estruturalmente do material literário, procurando os microclimas que favoreçam o encontro com a palavra, instalando-a numa temporalidade própria. As vias podem ser múltiplas: a evocação do canto na arquitetura do espaço; o diálogo entre a voz singular e a voz comunitária; a experiência da dilatação de uma frase, ou a paragem contemplativa sobre uma palavra. Nesse itinerário, o órgão e o saxofone assumem esse lugar de «estrangeiros», numa música visceralmente vocal, «vigiando o invisível».
Alfredo Teixeira

 

The Beatitudes
[SATB & organ], 1990-1991
Arvo Pärt

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os tristes, porque eles serão consolados.
Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
Bem-aventurados os que hão fome e sede [da] justiça, porque serão fartos.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.
Bem-aventurados os pacíficos, porque eles serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados sois vosoutros, quando vos injuriarem, e perseguirem, e contra vós todo o mal falarem, por minha causa, mentindo.
Gozai[-vos] e alegrai[-vos], que grande [é] o vosso galardão em os céus, porque assim perseguiram aos Profetas que antes de vosoutros [houve].

Mt 5: 3-12. Tradução de João Ferreira Annes d’Almeida, fixação de José Tolentino Mendonça

 

Hinário para um tempo de confiança
[SATB div., sax & organ], 2021
Alfredo Teixeira

1. Habitar o mundo

Deus criador, Arquiteto
do mundo diverso
na ordem e na justiça
assenta o Universo

nós somos as pedras do templo
peregrinos a caminho
da Presença diferida
e do Sopro que nos guarda

às portas do silêncio
vigiamos o invisível
o incenso que trazemos
sobe do nosso chão

Este é o lugar de refazer
os nós, as alianças
ergamos juntos o louvor
que nos obriga e larga

o templo manifesta
a presença amante
Deus é a nossa festa
o perto e o distante

in O Nome e a Forma: Poesia reunida. Lisboa: Pedra Angular, 2009, 280s

 

2. Deus infigurável

Ó Deus, sítio da alegria,
Terreiro da nossa espera,
De ti nasce o amor que cria
E o dom do estremecimento;
Vem buscar ao nosso poço
O que nele é canto de água

Ó Deus, Deus infigurável,
Pão verde da nossa fome,
De ti desceram as fontes,
E as neves que nos acordam;
Vem colher em nosso chão
A semente do teu sonho

Ó Deus, quanta morte a monte,
Quanto a morte lavra a terra
E mais vai crescendo o abismo
Que da vida nos deporta;
Vem livrar a violência
Que nos cerca e desfigura

Ó Deus, longe ainda os tempos
Ditados por teus profetas
A terra que os olhos querem
O medo a desterra ainda;
Vem escrever em nossos olhos
As fogueiras da promessa

in Cantai com arte e com alma. Lisboa: Edições Paulistas e Logomedia, 1992.

 

3. o rosto e a casa

seja o teu rosto
o brasão da casa
a alegria, o mosto
na aflição a asa

sejam os traços
do teu nome em fuga
o rebento, o laço
como o sol a uva

dá à nossa vida
a graça de ser
no corpo em partida
tenda de acolher

e que ouçamos vir
o teu dia, o som
de paisagens verdes,
promessa do dom

in O Nome e a Forma: Poesia reunida. Lisboa: Pedra Angular, 2009

 

4. As sombras não assombram

Ó meu Senhor, farol que me iluminas,
em Ti Senhor minha alma se confia.
Meu protetor, escudo contra o mal,
ó minha luz.

Ao inimigo eu hei de fazer frente,
Hei de voltar a Ti o rosto em festa.
Hei de oferecer os dons que houver de Ti,
escondida a paz.

Eu hei de ver os teus mistérios santos,
na tua casa as sombras não assombram.
Alta esperança nos confins de mim,
me há de abrigar.

Texto em uso no Convento de S. Domingos, Lisboa

 

5. Vésperas de água

à beira destas águas me persigo:
é o vento a asa que não digo?

nestes plainos as vozes que se falam
em teu tear se tecem e me embalam

não vê o teu olhar mais fundo estas ruínas?
desconcerto do mundo

histórias que medito quando chove
e não sou eu quem grita, mas é Job

guardo um retrato pendurado
à cabeceira esquerda do meu lado 

é Deus que acende as margens deste medo
e dá raiz e vento ao meu degredo

escolhe-se a rima como dá o vento
sem velas não navega o pensamento

pertence à morte o que não tem memória
meu corpo sobe a nado a sua (van)glória

in O Nome e a Forma: Poesia reunida. Lisboa: Pedra Angular, 2009

 

6. Deus de madrugada

Dai-vos as mãos vós que viveis
de ouvirdes sons futuros
que nem a morte nem o medo
vos fechem entre muros

Também às grades se resiste
e à vida macerada
mais morte ainda é não haver
um Deus de madrugada.

É Deus que vai à nossa frente
fazendo o que anuncia
e é na memória de Jesus
que tudo principia

É no Espírito de amor
que o luto se faz esperança
e é no fazer do mundo a vir
que a liberdade avança.

in Cantai com arte e com alma. Lisboa: Edições Paulistas e Logomedia, 1992.


 

Alfredo Teixeira
Imagem: Ensemble São Tomás de Aquino
Publicado em 07.06.2021

 

 

 
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