A solidariedade com o sofrimento da população da sua diocese, com a insistente denúncia da pobreza e da guerra, tornaram o arcebispo D. Luiz Fernando Lisboa inoportuno ao poder político, mas foi devido à sua persistência, entre outras vozes, que o mundo, em particular os países lusófonos, conhece hoje um pouco mais da realidade de Cabo Delgado. E enquanto não é nomeado o sucessor, o administrador apostólico, D. António Juliasse Sandramo, sabe muito bem, por experiência própria, o que é fugir para não ser morto.
Desde 2013 que D. Lisboa, nascido no Brasil, era bispo de Pemba, na província moçambicana de Cabo Delgado. Durante cerca de quatro anos, a região no norte do país foi atingida pela ação de grupos insurgentes islamitas, causando acima de 3 500 mortos e obrigando mais de 600 mil pessoas a abandonarem as suas casas.
Desde 2019 que os rebeldes declararam a sua ligação ao autoproclamado Estado Islâmico, mas as suas motivações ainda estão por esclarecer cabalmente. D. Lisboa considera que o conflito é motivado pelos recursos naturais da província: «Há outras guerras que estão a ser travadas em África por causa do petróleo e minerais. Mas a crise humanitária [em Cabo Delgado] está a tornar-se incontrolável», afirmou.
O governo moçambicano demorou anos a reconhecer que estava a ocorrer um conflito armado, e o bispo de Pemba começou a tornar-se incómodo por, repetidamente, escrever e falar à imprensa sobre as pessoas que tiveram de fugir das regiões de guerra, abandonando casas e pertences, rumo a Pemba e outros distritos no sul de Cabo Delgado.
A diocese católica desempenhou um papel central na coordenação dos apoios humanitários na província. A Igreja distribuiu alimentos e medicamentos, providenciou abrigos e ajudou a transportar refugiados para outras regiões. O papa Francisco enviou dinheiro, e várias delegações diocesanas e nacionais da Cáritas entregaram donativos.
A atenção que Francisco concedeu aos apelos de D. Lisboa foi um momento de viragem: «Depois de o papa ter mencionado a guerra em Cabo Delgado [na mensagem “urbi et orbi” no domingo de Páscoa de 2020], muitas organizações internacionais começaram a ajudar Moçambique. A União Europeia também debateu o problema», testemunhou o prelado, que foi convidado pelo Parlamento Europeu para falar aos seus membros sobre a emergência humanitária.
«Depois disso, o governo moçambicano pediu oficialmente à União Europeia para intervir. Estamos à espera de desenvolvimentos concretos dessas conversações», acrescentou.
O presidente moçambicano, Filipe Nyusi, foi um dos críticos mais incisivos de D. Lisboa, devido às suas críticas sobre como o governo estava a lidar com a crise, e o prelado foi alvo de uma campanha difamatória movida por jornalistas pró-governamentais. Mas depois de o papa Francisco ter telefonado ao bispo, em agosto de 2020, Nyusi encontrou-se com ele, com vista a acalmar a tensão entre ambos.
Todavia, além de o conflito persistir, e as suas consequências continuarem a atingir a população, Cabo Delgado tem sido atingida por outros males: «Nos últimos anos, a região tem enfrentado ciclones, uma epidemia de cólera e a guerra. Agora, os casos de Covid-19 estão a crescer mais e mais todos os dias», relatou o arcebispo.
No início de fevereiro, o papa transferiu D. Lisboa para a diocese de Cachoeiro do Itapemirim, no sudeste do Brasil, e conferiu-lhe o título de arcebispo. No seu país de origem, D. Lisboa vai enfrentar uma realidade política polarizada, na qual a Igreja – quer os bispos quer o próprio papa – é vista por muitos dos apoiantes do presidente Bolsonaro como “esquerdista”.
«Passei duas décadas em África, mas nunca deixei de seguir os acontecimentos no Brasil. Trabalharei sempre pela unidade e comunhão. Mas é inaceitável que alguém que é parte da Igreja repudie todos os aspetos do segundo Concílio do Vaticano ou critique o papa», comentou D. Lisboa.
Em Pemba, D. António Juliasse Sandramo, um dos bispos auxiliares de Maputo, foi nomeado administrador diocesano: «Não creio que a assistência que está a chegar a Cabo Delgado seja suficiente. D. Lisboa mostrou que as necessidades locais são muito maiores do que aquilo que é possível oferecer agora. O sofrimento vai aumentar se não conseguirmos mais ajuda», disse.
D. Sandramo experimentou a guerra desde a infância, ao crescer perto da fronteira com o Zimbabué durante o seu conflito pela independência, nos anos 70, e depois ao viver a guerra civil de Moçambique, de 1977 a 1992.
«Um dia a minha casa foi alvo de um “raid”, e eu fugi. Um soldado disparou para mim, mas não fui atingido. Tive de me esconder nas florestas. Experimentei tudo isso, e sei o que é que os civis estão a enfrentar», assinalou.
Tal como em Moçambique não deixou de acompanhar a realidade brasileira, D. Lisboa quer agora manter a ligação com Pemba: «Uma diocese só pode ser considerada amadurecida quando tem uma natureza missionária. Quero aprofundar essa dimensão em Cachoeiro do Itapemirim. Se houver candidatos a ir para África, dar-lhes-ei todo o apoio necessário. Temos de partilhar o que temos, mesmo que não seja muito».
Um dos setores regionais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tem apoiado desde há anos a diocese moçambicana: «Mantém nove missionários brasileiros em Pemba, fornecendo-lhes carros e uma casa. Também organizou campanhas de angariação de fundos e enviou ajuda para os refugiados de Cabo Delgado».
«Considero Moçambique como a minha segunda casa. Não podemos ficar aqui só a ver a população de Cabo Delgado a viver em condições tão indignas», vincou. D. Luiz Lisboa.