Figura representativa do desenvolvimento histórico do Neorrealismo, Carlos de Oliveira, de quem se assinala o centenário do nascimento (10.8.1921-1.7.1981), merece porém destaque maior por se vir a tornar figura de proa na ultrapassagem dessa formação estético‑literária, até se firmar na vanguarda da experimentação formal do discurso na narrativa e se afirmar uma das quatro figuras de referência na lírica (a par de Sena, Herberto e Belo).
O primeiro livro de poemas, Turismo (1942), surge dividido em duas partes com títulos emblemáticos de topologia autoral: «Amazónia» e «Gândara»; e na primeira parte, assim liminarmente colocada sob o signo da evocação do que em O Aprendiz de Feiticeiro Carlos de Oliveira chamará «A Amazónia insondável onde eu nasci», são múltiplas as referências de exotismo transatlântico; mas, tendo de permeio o selo elegíaco que os anos de Coimbra imprimiram na lírica do jovem autor da Gândara, é a esta região entre Cantanhede e o mar — ao seu ambiente de aridez geofísica e de miséria social, de desolação e insegurança — que a sua obra ficará intimamente ligada, pelos temas e personagens, pelos símbolos e pela depurada resiliência verbal.
Com Turismo e Casa na Duna, como logo depois com Alcateia e Mãe Pobre, emerge uma faceta peculiar (embora não exclusiva) de Carlos de Oliveira no quadro da sua geração neorrealista: certo equilíbrio entre criação lírica e criação narrativa, que seguem quase a par, e de modo que idêntica constelação de temas e motivos surja liricamente elaborada e projetada na ficção novelística.
Logo em Turismo a proverbial lógica de primicial acumulação da experiência e do conhecimento do mundo é endossada, segundo a poética marxista e o seu gosto da coralidade dramática, a personagens representativas na luta coletiva pela emancipação histórica (o índio e o negro, o emigrante e o seringueiro, o ganhão e a camponesa, etc.); logo em Casa na Duna a narrativa, estilisticamente tributária de Graciliano Ramos, pretende conduzir à reflexão dialética, vetor perene na subsequente ficção de Carlos de Oliveira e no modo como as contínuas revisões e refundições a que a submeterá decorrerão do empenho em apurar a escrita como desmascaramento das condutas rituais e das formas estereotipadas.
Mas a mesma versão originária de Casa na Duna ilustrava, com a experiência trágica centrada na morte de D.ª Conceição Pina, outra constante: a tendência romanesca de Carlos de Oliveira e o inerente desdobramento da problemática humana pela partilha de responsabilidades entre a História (político‑económica) e a Natureza (confundível com o acaso e com a fatalidade).
O segundo romance, com o título alegórico Alcateia (1944), acentua a índole de militância política (de orientação marxista‑leninista no círculo de influência da personagem Rafael) e traça com maior clareza (por vezes à beira do didatismo) o retrato da sociedade capitalista liberal, intentando desmontar os seus mecanismos, as suas contradições, a sua hipocrisia.
O segundo livro de poemas, a Mãe Pobre de 1945, forma com Alcateia o díptico proletário na obra de Carlos de Oliveira, mas no perfil do Povo sobrepõem‑se a comunidade de classe trabalhadora e a comunidade de tradição antropológica; daí, e do facto de o canto do Poeta se querer emanação do génio do Povo, advém a assimilação da voz romântica no compromisso neorrealista.
Perto de encerrar o período coimbrão, Carlos de Oliveira publica em 1948 o romance Pequenos Burgueses e funda, com Joaquim Namorado, a coleção de poesia «O Galo», na qual fará sair a coletânea lírica Colheita Perdida e onde colabora no opúsculo poético de Homenagem a Gomes Leal.
Em Pequenos Burgueses prosseguia a visão romanesca e dialética do mundo gandarês, mas encontrava pretextos para alargar em retrospetiva histórica o libelo contra a sociedade portuguesa sob o domínio da burguesia liberal.
Quanto a Colheita Perdida, adotava tonalidade ominosa, modulando as assombrações de privação e morte num registo tributário das afinidades cultivadas por Carlos de Oliveira com os escritores finisseculares que entretanto homenageava (Gomes Leal, Camilo Pessanha, Raul Brandão); no centro do tríptico em que se organizava, «A Noite Inquieta» condensava as obsessões ideológicas, temáticas e imagísticas do escritor, abrindo caminho para a sua culminante elaboração em Descida aos Infernos (1949).
Terra de Harmonia é o nome utópico que em 1950 intitula nova coletânea lírica que, conduzindo ao «Acordam pouco a pouco os construtores terrenos», introduz a crucial «cura de prosa» a que, no dizer de Joaquim Manuel Magalhães, Carlos de Oliveira submete a sua poesia, e, com versos de densas relações intertextuais, atribui posição relevante e função depurante àquele «núcleo de palavras‑motivos» que suportará os pilares do universo poético a partir de Sobre o Lado Esquerdo (insónia e deserto, silêncio e cegueira; mas, doravante, sobretudo: cal, gelo, ruína, duna, areia, revérbero, brancura...).
Enquanto as refundições de Casa na Duna e de Pequenos Burgueses vão no sentido de análise mais subtil da corrente da consciência e dos conflitos interpessoais e incrementam a representação simbólica, o romance Uma Abelha na Chuva, de 1953, inova sobre a invariante de indagação romanesca da degenerescência que ameaça comunidades dominadas por uma pequena‑burguesia que ascende sobre a ruína dos grandes proprietários tradicionais da terra. Acompanha a criação lírica na visão alegórica sobre o trágico da condição humana e no movimento de depuração dos vectores programáticos neorrealistas, perante a exigência de atenção sistemática aos recursos técnico‑formais na construção da mensagem literária (a analepse, a cena dialogada, a prevalência da focalização interna, os comentários e as sugestões do narrador, o diálogo imaginário e irónico entre narradores e personagens).
No dealbar dos anos 60, a faceta comprometida da criação literária de Carlos de Oliveira torna a avultar com as contribuições de poemas seus para o novo livro de textos musicados de F. Lopes‑Graça, Canções Heroicas, Dramáticas, Bucólicas e Outras. Mas a coletânea Cantata assinala a revisitação e despedida da primeira fase do seu lirismo, doravante ocupando‑se cada vez mais do seu poien, mas longe dos jogos formalistas do Modernismo: certa suspeita ou consciência de irrisão e impotência amargura a poesia nova de Carlos de Oliveira, enquanto a economia verbal e prosódica, bem como a contenção emotiva determinam que o poema se componha como frase única decomposta em versos muito curtos e em torno de uma única imagem (construída no campo semântico do bolor, da lágrima, do sono, do fóssil, do cardo, do sol, da uva, da palavra, do dicionário...).
Por 1962, o volume Poesias colige e revê os textos dos livros precedentes (e anexa, como «Post‑Scriptum» de Terra de Harmonia, a terceira realização de poema extenso, «Ave Solar», acume do coeficiente de mitificação poética da geração neorrealista).
A saída de Poesias numa coleção editorial de grande significado epocal na dinâmica do campo literário português — a série «Poetas de Hoje» da Portugália —, constitui marco de recapitulação estética; e permite a Carlos de Oliveira passar a oferecer — paralelamente à ascensão da linha de exuberância discursiva de Ruy Belo e de Herberto Helder e à reafirmação da estética do testemunho de Jorge de Sena — outro grande modelo de lírica construtivista, onde se assimilam alguns aspetos da poética neomodernista do grupo «Poesia 61» para pensar espacial e objetualmente o texto de veemência contida e rigor oficinal e para tentar conciliar o desejo de vanguarda estética com o espírito de vanguarda política à maneira de Maiakovski.
Aprofundando o processo de desmontagem das heranças retóricas do Romantismo social (anteriano e outro), Sobre o Lado Esquerdo e Micropaisagem vêm em 1968 facetar, em estratégia conceptual, alegórica e metonímica, o perfil poético de Carlos de Oliveira.
Em 1971, a recolha de crónicas e artigos O Aprendiz de Feiticeiro vale como roteiro da biografia intelectual, mas sobretudo propicia o reencontro elucidante com reflexões mundividentes e digressões metaliterárias — no ano em que surge novo livro de poemas, Entre Duas Memórias, no qual a contenção minimalista do texto dá lugar, com os elementos de reiteração e de simetria estrófico‑versificatória, de segmentação permanente pelo grafema de ponto e vírgula e pela organização interseccionista das imagens, a uma proliferante «encenação poética da categoria materialista do reflexo» (no dizer de Manuel Gusmão).
Em 1976 o escritor reapresenta a sua obra lírica em dois volumes de Trabalho Poético, enriquecido com textos inéditos de Pastoral, que no ano seguinte dá voz consciente a uma comunidade que dela historicamente teria sido destituída; e em 1978 Carlos de Oliveira ainda surpreende com a narração mais elíptica e a semântica mais indeterminada de Finisterra.