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Leitura: “Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano C”

Luciano Manicardi, prior da comunidade monástica de Bose, em Itália, assina os textos do livro “Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano C”, recentemente publicado pela Paulinas Editora, com prefácio de D. José Tolentino Mendonça.

No novo ano litúrgico, a iniciar no primeiro domingo do Advento, 2 de dezembro, a Igreja propõe o Evangelho segundo S. Lucas. Com textos que se tornam «literatura», o terceiro evangelista «revela-se um homem de Igreja inteligente e avisado, guiado por sentido pastoral evangélico e por um profundo sentido de humanidade», lê-se na sinopse.

Dirigido aos ministros que têm de preparar a pregação dominical, bem como para quem a vai escutar, a obra não esquece os grupos de cristãos que se reúnem para meditar e rezar as leituras bíblicas proclamadas nas missas.

«As reflexões que constituem este livro apresentam-se como paradigmáticas de uma abordagem do texto bíblico que vai avançando por graus de aprofundamento progressivo do texto através da leitura, da me ditação, da oração e da contemplação», destaca o autor.

Apresentamos, seguidamente, o texto introdutório do volume, acrescentado da primeira meditação de Luciano Manicardi, correspondente ao domingo inaugural do Advento.

 

Alimentar-se da Palavra de Deus
José Tolentino Mendonça
In “Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano C”

Um livro novo de Luciano Manicardi merece ser festejado. A intensidade espiritual do autor e a consistente bagagem no campo dos estudos bíblicos, da antropologia e das ciências humanas tornam-no um interlocutor especialmente preparado para o anúncio do Evangelho na contemporaneidade. Em encontros e publicações anteriores com o público português isso ficou já bem patente. Mas neste livro de comentário à liturgia dominical há algo mais: podemos constatar, em direto, a paixão e a perícia com que Manicardi lida com o texto das Escrituras, que se revelou desde cedo o centro do seu estudo e o objeto destacado da sua missão. Em entrevista recente à edição italiana da Família cristã, à pergunta «porque é a Bíblia tão importante para a vida cristã?», ele responde desta maneira: «Porque nos permite conhecer Jesus de Nazaré... Através da Bíblia – e dos Evangelhos em particular – podemos conhecer a humanidade de Jesus Cristo e o sentido profundo dos seus gestos. A vida cristã pode assim nutrir-se das fontes, da “fonte genuína” da fé, como diz a Dei Verbum. E este conhecimento não é puramente intelectual, mas constitui uma indicação da via a percorrer, um conhecimento prático que nos diz como orientar a nossa humanidade pessoal, aqui e hoje.» O programa da sua proposta fica assim estabelecido: a chave de leitura é fundamentalmente cristológica e a finalidade é alcançar uma sabedoria concreta que avizinhe a nossa humanidade daquilo que Deus tornou visível na humanidade de Jesus de Nazaré. A inteligência espiritual de Manicardi, a sua impressionante cultura bíblica, as suas competências no campo da hermenêutica apresentam-se inteiramente dedicadas ao serviço do anúncio do Verbo incarnado. Não admira, por isso, que esta obra do atual prior da Comunidade Monástica de Bose constitua um instrumento oportuno para a construção do percurso cristão.



A imagem da homilia como o cumprimento mecânico de uma formalidade ou como um aborrecimento que se tem de dominicalmente suportar está ultrapassada. Como canta Bob Dylan, agora prémio Nobel da literatura, «for the times they are a changin’». E que mudança é essa?



Hoje há um número cada vez maior de leigos que sente a necessidade de preparar previamente a liturgia de domingo – sobretudo a Liturgia da Palavra – e alimentar-se do seu ressoar interior ao longo da semana. É uma prática que precisa de ser estimulada. O Concílio Vaticano II promoveu o acesso de todo o Povo de Deus à Palavra, mas ainda existe muito caminho a percorrer para que a generalidade dos cristãos ganhe esse amor e esse apego concreto à Sagrada Escritura. Falta trabalhar uma formação bíblica das comunidades, para lá dos círculos especializados. Sabemos que muitos cristãos se aproximam da Bíblia com a melhor boa vontade e logo a abandonam, desiludidos, porque afinal a leitura é uma operação complexa que requer instrumentos e aprendizagem! Este livro de Manicardi é uma ótima ajuda, pois não só apresenta uma interpretação sempre sugestiva, mas ensina a ler o texto à maneira do escriba referido por Jesus no Evangelho, que sabe retirar «do tesouro [da Palavra] coisas novas e coisas antigas» (Mt 13,52). Para quantos estão comunitariamente comprometidos, empenhados na catequese, nos grupos de vida, na pastoral familiar, nas equipas de jovens, na preparação da liturgia ou para quantos são ainda buscadores solitários da experiência da fé, este livro deve ser recomendado.

Mas igualmente para os pastores, que são chamados a viver da Palavra de Deus e a pregá-la em cada dia, o texto de Manicardi é um subsídio excelente. A nossa época está a viver uma mudança de paradigma em relação à homilia. Não é por acaso que a ela se tem concedido sempre maior importância. A imagem da homilia como o cumprimento mecânico de uma formalidade ou como um aborrecimento que se tem de dominicalmente suportar está ultrapassada. Como canta Bob Dylan, agora prémio Nobel da literatura, «for the times they are a changin’». E que mudança é essa? Ela cada vez se parece menos com um sermão enfático, um vago panegírico exortativo ou uma paráfrase moralizante, como demasiadas vezes foi encarada, para aproximar-se mais do seu sentido original. De facto, o termo homilia, que em latim se diz exatamente da mesma maneira, homilia, deriva do verbo grego homilèin, verbo que significa «conversar, estabelecer familiaridade discursiva com alguém». É com essa semântica de proximidade que aparece, por exemplo, reproduzido em Lucas 24,14-15, aludindo ao conversar dos discípulos de Emaús, e em Atos 20,11 referindo-se à atividade litúrgica do apóstolo Paulo. Mesmo se uma homilia não se configure imediatamente como uma troca de opiniões ou um debate entre a assembleia e o presidente da celebração, a verdade é que ela tem de «conversar» subjetivamente com aqueles que tem diante de si, evitando tornar-se num monólogo fechado que sobrevoa a vida.



Levantar a cabeça significa também «erguer os olhos» e ver aquilo que para muitos permanece invisível: a salvação que avança entre as tribulações históricas, o Reino que emerge dos escombros da história, a promessa do Senhor que se mantém firme mesmo quando se acumulam ruínas «sobre a terra»



No espírito da Constituição do Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium, e para implementar o renovamento litúrgico desejado pelos Padres conciliares, a Santa Sé publicou um conjunto de instruções, onde se insiste em dois aspetos: a ligação da homilia à Escritura («a finalidade da homilia é a de tornar compreensível aos fiéis a Palavra de Deus») e ao contexto daqueles que a escutam. Na mesma linha, a Exortação Apostólica de João Paulo II sobre a Catequese, Catechesi tradendæ, afirma: «É necessário dedicar grande atenção à homilia. Esta não deve ser demasiado longa, nem demasiado breve, rica de ensinamentos e adaptada aos auditores.» Em A Alegria do Evangelho, o papa Francisco detém-se «particularmente, e até com certa meticulosidade, na homilia e sua preparação, porque são muitas as reclamações relacionadas com este ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos ». O Papa aponta a homilia como o termómetro «para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um pastor com o seu povo». E recomenda vivamente aos pastores o tempo e a qualidade da preparação: «um tempo longo de estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral.» O presente comentário de Manicardi escutou, e ajuda-nos a escutar, o desafio urgente de Francisco.

 

I Domingo do Advento
Luciano Manicardi
In “Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano C”

 

A perspetiva escatológica no coração das três leituras bíblicas ilumina de luz particular, no texto de Jeremias, a , isto é, a confiança no cumprimento das promessas de Deus; na segunda leitura, a caridade, na qual todos os crentes são chamados a crescer; e, no Evangelho, a esperança, a esperança da vinda do Senhor, que os cristãos alimentam mesmo perante acontecimentos catastróficos e contradições. Emerge assim a dimensão escatológica das virtudes teologais. As passagens do Antigo Testamento e do Evangelho pedem ambas para discernir o avizinhar-se da salvação no meio de tribulações e de situações que ocultam o cumprimento da promessa de Deus.

A vinda do Senhor (a que apenas se faz uma alusão em Lc 21,27) é vista por Lucas nas reações que produz sobre os homens: o drama escatológico, diz Lucas, é também um drama histórico e existencial. Acontecimentos catastróficos na natureza e na história, no céu e na terra que serão motivo de angústia e desorientação, de espera ansiosa, de medo e de morte para muitos homens –, para os crentes poderão ser o sinal de que se avizinha a salvação. «Erguei-vos e levantai a cabeça porque a vossa libertação está próxima» (Lc 21,28). Levantar a cabeça significa também «erguer os olhos» e ver aquilo que para muitos permanece invisível: a salvação que avança entre as tribulações históricas, o Reino que emerge dos escombros da história, a promessa do Senhor que se mantém firme mesmo quando se acumulam ruínas «sobre a terra» (Lc 21,25). Nenhum pessimismo, nada de fazer coincidir as catástrofes naturais e históricas, tão devastadoras, com o fim do mundo, mas também nenhum cinismo, nenhuma fuga das dores da realidade para se refugiar numa visão espiritualista ou ingenuamente otimista. De resto, para Lucas, não são só os «homens», isto é, «os não-crentes», que são submetidos ao risco de serem vencidos e esmagados pelos acontecimentos que devem ocorrer, mas também os crentes, se não vigiarem e não rezarem (cf. Lc 21,34-36).



É assim que a espera do Senhor que há de vir pode tornar-se realidade quotidiana, vivida «em cada momento». Esperar o Senhor velando e orando significa fazê-lo reinar sobre o nosso hoje e conhecer, portanto, a sua vinda já, aqui e agora



Vigiar significa, portanto, lutar positivamente contra a angústia (v. 25), contra o risco de acabar à mercê do medo, de fantasmas e de crenças que nos inquietam, significa não cair na desorientação, não se extraviar, ou seja, não perder o norte, não ser desviado pelos acontecimentos que ocorrem; significa reencontrar força e coragem que impeçam o pavor de nos paralisar e conduzir à morte (v. 26: «morrerão de pavor»); significa alimentar a esperança cristã, e não alimentar esperas angustiadas e ansiosas (v. 26).

A vigilância tende a impedir que o coração se torne pesado (v. 34), que se torne espesso e perca a lucidez, que se revista de uma couraça que o defenda dos sofrimentos da vida. A vigilância é luta contra a habituação e o seu efeito anestésico. Em particular, a advertência alerta para o embotamento dos sentidos e da inteligência que pode provir de uma angústia que empurra para excessos de comer e de beber, de um medo da morte que é exorcizado na luxúria, de um não-sentido que se manifesta nas preocupações obsessivas consigo próprio. É assim que a espera do Senhor que há de vir pode tornar-se realidade quotidiana, vivida «em cada momento» (v. 36). Esperar o Senhor velando e orando significa fazê-lo reinar sobre o nosso hoje e conhecer, portanto, a sua vinda já, aqui e agora. E significa ser fortalecido, receber força para assim perseverar nas tribulações e nas provações e nisso discernir a proximidade da salvação (v. 36).

Oração e vigilância, que põem o crente na presença de Deus, apresentam uma valência escatológica: vivendo na presença do Senhor no presente, o crente prepara-se para o encontrar quando da sua vinda.

O início do Advento, com a recomendação de Jesus – «Vigiai e orai em todo o tempo» –, é ocasião oferecida ao crente para verificar a qualidade da sua oração e, mais radicalmente, se ao menos reza. E interrogar-se sobre a sua própria oração significa interrogar-se sobre a sua fé e sobre a qualidade da sua vida.


 

Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 30.10.2018 | Atualizado em 07.10.2023

 

Título: Comentário à liturgia dominical e festiva – Ano C
Autor: Luciano Manicardi
Editora: Paulinas
Páginas: 184
Preço: 13,00 €
ISBO: 978-989-673-663-7

 

 
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