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Da necessária angústia da decisão e sua recompensa

A partir de uma cena de um mundano e comercial filme de Hollywood, se bem que com momentos de grandeza humana – assim haja capacidade de tal perceber –, podemos intuir duas grandes estruturas antropológicas, éticas e políticas do humano, bem como a paixão que transcendentalmente existe em toda a vida religiosa verdadeira, que não seja uma aburguesada busca de impossíveis consolos e de impensadas formas de salvação, obtidas por meios comerciais. Há, ainda, um corolário político a extrair.

A obra cinematográfica é o filme Pearl harbour, de Michael Bay. As grandes estruturas são a angústia da decisão e a imediata recompensa desta última, de que a angústia faz, redobrada, parte. A paixão é, ainda, a angústia. Esta mesma paixão é, no entanto, coincidente com a grandeza ativa do que cada ser humano é, no mais profundo de seu ser. O corolário prende-se com a mediocridade da estruturação hierárquica das forças armadas que nos servem.

O ataque do Império do Sol Nascente, Japão, à esquadra norte-americana estacionada – salvo os navios porta-aviões – na base militar de Pearl Harbour, no Havai, a sete de dezembro de 1941, que apanhou impreparadas as forças norte-americanas, causou um número elevado de baixas, na ordem total de dezenas de milhar, entre as quais mais de dois mil e quinhentos mortos em combate.



A certa altura, uma das jovens tenentes enfermeiras que fazia esta triagem, grita, em desespero, que já não sabe o que há de fazer. Terrível grito humano, de quem está, precisamente, a fazer todo o bem que humanamente se pode fazer



Nenhuma base militar tem instalações de saúde pré-preparadas para lidar, em poucas horas, com tal avalanche de baixas. Gera-se um fenómeno de sobrelotação, em que, no meio de confusão e de pânico, percebendo que não é humanamente possível atender devidamente tantos carenciados de auxílio, há que escolher.

Esta escolha não é o mesmo que decidir quem se convida ou não se convida para a festa de casamento: trata-se de escolher, muitas vezes, entre quem vai poder viver, porque vai poder ter assistência sanitária, e quem não vai viver, por ausência deliberada de tal assistência. É uma decisão concomitantemente ética, política, mas, sobretudo, é uma decisão que se baseia na estrutural verdade de que os recursos económicos – em saúde, neste caso – são sempre possivelmente escassos e, por vezes, realmente escassos.

Tal foi o panorama em Pearl Harbour. No filme, a certa altura, um médico, perante a impossibilidade física de tratar todos os feridos, envia uma das jovens tenentes enfermeiras para a entrada do hospital com a tarefa de selecionar – agora, diz-se «triar» – quem estava em condições de sobreviver, crítico ou não; quem estava em condição tal que, naquelas condições, já nada havia, ali e então, a fazer (noutras circunstâncias, talvez fosse possível salvar tais pessoas, não naquelas) era posto à parte para morrer.



Esta angústia abeira-se do desespero e, do desespero, não há retorno. Apenas a ação resolve a questão, pois, ao decidir-se continuar com a sua tarefa, realizando todo o bem realmente possível, o desespero desaparece, dando lugar à pura grandeza do ato de salvar o que é possível salvar-se



Sem ser evidentemente omnisciente, a jovem tenente enfermeira pega num seu «baton» labial, bem vermelho, e vai cumprir a missão: marcar com «C» os críticos salváveis; com um «M» aqueles a quem tinha sido ministrada morfina, a fim de evitar uma possível sobredosagem e a consequente desnecessária morte; com «F» os que considerasse «fatais» e, assim, não passíveis de qualquer ato curativo. Ironicamente, a esses poderia e deveria ser administrada tanta morfina quanto a necessária para lhes retirar as dores, excruciantes nestes casos de terríveis ferimentos (tal não configura qualquer forma de eutanásia, é apenas o necessário alívio, sem o qual se submete o ferido a um sofrimento inútil, perverso, diabólico, porque evitável). Outras assumiram tarefa semelhante.

Ora, a certa altura, uma das jovens tenentes enfermeiras que fazia esta triagem, grita, em desespero, que já não sabe o que há de fazer. Terrível grito humano, de quem está, precisamente, a fazer todo o bem que humanamente se pode fazer.

Se quem está a fazer todo o bem que humanamente se pode fazer já não sabe o que fazer, atinge-se o momento clímax mais baixo a que a humanidade pode descer e que é, até formalmente, indiscernível do que é o sentido infernal; só que, nestas ocasiões, não estamos perante a imagem mítica do inferno, mas perante a realidade infernal da vida humana – ainda por cima, por ação perversa humana que provoca tal situação – em que a humanidade, simbólica, mas, sobretudo, realmente, se encontra à beira da sua aniquilação ou transformação em coisa infernal, o que não é muito diferente.



Toda a decisão, ao escolher sempre uma possibilidade de entre infinitas, elimina a possibilidade de todas as que não foram eleitas. Toda a ação é, assim, geradora de formas de angústia por aniquilação de possibilidades, mormente quando se trata de ter seres humanos como seu objeto



Esta angústia abeira-se do desespero e, do desespero, não há retorno. Apenas a ação resolve a questão, pois, ao decidir-se continuar com a sua tarefa, realizando todo o bem realmente possível, o desespero desaparece, dando lugar à pura grandeza do ato de salvar o que é possível salvar-se.

E é esta a segunda estrutura: o ato e o bem através dele conseguido constituem a recompensa ontológica de quem assim age: transforma-se a pessoa no bem que realiza, que cria.

No entanto, a primeira estrutura não só não desaparece como se adensa: a angústia de ter de decidir não quem vive, mas quem morre, só aumenta à medida que o decisor vai fazendo o bem que pode. Ora, o bem que pode para uns implica necessariamente um não-bem para os outros e tal é irresgatável.

Não interessa que politicamente a culpa – não é apenas responsabilidade – seja de terceiros; não interessa que eticamente quem assim age esteja mesmo a fazer todo o bem que pode: a sua decisão salva, mas, concomitantemente, condena, mata.

Toda a decisão, ao escolher sempre uma possibilidade de entre infinitas, elimina a possibilidade de todas as que não foram eleitas. Toda a ação é, assim, geradora de formas de angústia por aniquilação de possibilidades, mormente quando se trata de ter seres humanos como seu objeto. Esta condição humana não é removível, podendo haver, sim, formas menores de viver a decisão, que transformam sempre o ser humano em coisas antropologicamente também menores, sempre que vivem a decisão como coisa ligeira ou não-sua.

O corolário que se retira é fácil de expor: todo o pessoal de enfermagem das forças armadas norte-americanas presente na Segunda Grande Guerra pertencia à classe dos oficiais – os socorristas, «medics» e «cormen»» não –: tal leva perguntar por que estranha razão o mesmo não se passa em Portugal, volvidos quase oitenta anos e mesmo após a ação heroica das Enfermeiras Paraquedistas, notável paradigma sanitário e militar? Haverá medo de que um dia um enfermeiro chegue a General ou a Almirante?


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 11.09.2018 | Atualizado em 07.10.2023

 

 
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