Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Da «terrível guerra» e de quem a ama

Num livro que a neta de Winston Churchill, Celia Sandys, dedicou à vida do avô, encontramos a seguinte citação de palavras do «velho bulldog»: «Ah, terrível guerra, espantosa mistura de glória e imundície, de coisas miseráveis e sublimes, se os modernos líderes esclarecidos te conhecessem mais de perto os homens simples dificilmente te voltariam a ver.» (Lisboa, Aletheia, 2006, p. 27).

Houve quem acusasse o próprio Churchill de amante da guerra, confundindo a sua falta de cobardia – essa cobardia de todos os que deixaram Hitler fazer o que sempre quis, por exemplo – com “amor” à guerra. O trecho citado define bem o que a guerra é, mesmo quando, sendo inevitável, devido, nunca a razões objetivas, mas à maldade humana, serve para resolver problemas que de outro modo seriam irresolúveis: o caso da Segunda Guerra Mundial é de tal paradigmático.

A guerra é «terrível».

Dificilmente haverá alguém inteligente e honesto que tal conteste. Ainda assim, se houver, que experimente, não arranjar um nova guerra – as que há já são em excesso, todas –, mas integrar bem no seu âmago uma das que por aí andam. Poderá encontrar em tal ato uma justa justiça poética. E que descanse em paz.

Na guerra, sempre tendencialmente caótica – e caótica, mesmo, se se deixar que entre em paroxismo e se cumpra essencialmente –, encontra-se uma «mistura» de «glória» e de «imundície». Se na guerra só se encontrasse glória, nada seria melhor do que fazer guerra. É verdade que na guerra se pode encontrar glória. Não é na glória que se consegue na guerra que reside o problema, mas no preço que tal glória – seja ela qual for, mesmo alguma que seja “santa” –, para ser «glória», implicou.

O preço, mesmo dos atos mais nobres e belos na guerra, é sempre isso a que Churchill se refere, e bem, como «imundície». A guerra é sempre imunda.

Não se trata de uma opinião, mas de algo que é objetivo: sem esta «imundície», não há, sequer, guerra. Por outro lado, sempre que tal «imundície» se verifica, estamos em guerra, onde quer ou quando quer que seja, não tem de ser entre “estados”, pode ser num aglomerado que passe por família, pode ser na empresa.

A imundície consiste na destruição e morte que a guerra implica. Sem esta destruição e morte, não há guerra; haverá outra coisa qualquer.

É porque destrói o que destrói e mata o que mata – não apenas seres humanos, mas partes significativas do ecossistema que somos – que a guerra é sempre imunda.

O termo que Churchill usa tem a vantagem de ser descritivamente duro, diamantino. A guerra não é dita «má», que o é; ora, isso já qualquer ser humano que não seja uma besta ética e política sabe. O termo «má» banalizou-se já há muito tempo numa humanidade que, precisamente, pratica a maldade de forma comum, embora, por vezes, com eficazes disfarces, até de santidade.

Remeter para a imundície da guerra é pôr imediatamente quem lê ou ouve a afirmação para a intuição do que constitui a imundície, mesmo que nunca tenha presenciado – como Churchill presenciou diretamente – a imundície da guerra. Mas já todos presenciaram qualquer forma de imundície, que, freudianamente ou não, é sempre desagradável, exceto para quem seja amante de viver em pocilgas – o símbolo é claro.

Na guerra não há longínquas estéticas bélicas ou outra qualquer forma pseudo-poética de tolice esteticista; na guerra, há pó ou lama misturados com sangue, suor, lágrimas, intestinos, pedaços de membros do que já foi um ser humano, talvez até uma santa pessoa – onde está o Autor de O principezinho, em que pó ou lama se misturou o seu sangue?

Na guerra não há belas imagens culturais de ruínas feitas pela mão do ser humano: há destruição de bens, alguns belíssimos e utilíssimos, alguns da maior grandeza possível ao Homem; alguns menos nobres; todos fruto de outros suores, os que constroem a paz.

A guerra não é oportunidade de coisa alguma mais do que de destruição e morte: se dúvidas houver, quem as tiver que faça o favor de aplicar a si próprio o que considera deva ser aplicado aos que pensa que devem ser eliminados como consequência de tão “boa” oportunidade. E que descanse em paz.

Não se confunda a tensão pró-criadora da dialética do movimento do mundo e da cultura, que não mata coisa alguma, que não aniquila coisa alguma, mas que faz sempre novo, como se pequeno Deus fosse, com a guerra, que literalmente rouba as possibilidades próprias de quem mata, assim cometendo o pior dos crimes em termos ontológicos, que é matar não o que já se foi – ilusão –, não o que se é, mas o que se pode ser, sem o que nada pode ser coisa alguma.

Convertam-se os cobardes amantes da guerra – os outros já todos fizeram a experiência de experimentar a guerra em si próprios e não sobreviveram – à dificuldade criadora da paz, ao trabalho que constrói possibilidades e coisas a partir das possibilidades, que poetiza cultura, em vez de parasitar a cultura, destruindo; convertam-se ou, então, façam o favor de levar a guerra ao limite, mas contra si próprios, assim poupando os demais.

As súplicas estultamente inatendidas do Papa Francisco a que se pare o caminho de guerra em que a hodierna humanidade já está laboram no sentido de evitar a imundície de que Churchill falava. Imundície que este detetou em todas as formas de fascismos, de direita e de esquerda, que intuiu maximamente presente em Hitler, contra quem sempre falou, apelando a uma paz forte, evitando uma forte guerra.

Também Churchill não foi ouvido. Os amantes da guerra e os seus sequazes, muitos com máscaras de gente de paz, sempre imperam.

Tendo o Santo Padre razão – e tem –, quando tal se perceber de forma para todos evidente, que haja, ao menos, a decência de reconhecer que Francisco tinha razão. Quando se estiver – e dificilmente nos furtaremos a que tal aconteça – atolado na imundície da guerra, que se assuma o mal que cada um fez para que tal acontecesse e que não se acuse quem não teve culpa, seja o Papa ou Deus, como se fez aquando da Segunda Grande Guerra: não era Deus quem iria tirar Hitler de Berlim na década de trinta e, como Hitler bem sabia, o Papa não dispunha de mais do que da Guarda Suíça.

O responsável pela guerra sou eu (por pensamentos, palavras, atos e omissões).


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Em vésperas do seis de junho, "D-Day", 2019
Imagem: D.R.
Publicado em 21.06.2019 | Atualizado em 07.10.2023

 

 
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Impressão digital
Paisagens
Prémio Árvore da Vida
Vídeos