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Do tempo livre à libertação do tempo

Apresentação
Libertar o tempo

O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura oferece à cultura em Portugal, e à Igreja no seu conjunto, esta síntese da reflexão que dedicou, ao longo de três anos, à temática do «tempo livre». É o seu primeiro trabalho no género, tentando um desempenho oportuno e específico do seu encargo, dentro da Conferência Episcopal Portuguesa em que se integra.

Num processo de discernimento sobre a nossa contemporaneidade, evidenciou-se o «tempo livre» como tópico particularmente sintomático. Indicado, por se ter tornado um campo de formulação do sonho e do desejo, mesmo numa sociedade em que o trabalho é tantas vezes a maior necessidade. Indicado, porque, tendo sido em grande parte absorvido e regido como indústria, o «tempo livre» não cumpre só por si o que promete, tornando-se, por vezes, em cativeiro de expectativas e energias.

Podemos até dizer que, sendo o tempo uma realidade humana, ao menos na sua dimensão psicológica, só é «livre» quando realmente liberta. Ou seja, não alienando o inalienável, a condição humana e a sua essencial complexidade, mas aprofundando-lhe a substância, até à suma simplicidade. Simplicidade em que cada um seja finalmente coeso, identificadas a inteligência e a vontade num único desejo, ainda além delas. No fundo, é a nós mesmos que libertamos, quando a dimensão temporal se abre à eternidade; quando o desejo que acrescenta os momentos, mais do que os abrevia, se dissolve num oceano sem margens. Di-lo ‘infinitamente’ bem Bento XVI, no passo da sua encíclica sobre a esperança: «A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjeturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo - o antes e o depois - já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria» (Spe salvi, §12).

O presente texto é agora confiado a quem o queira receber
e aplicar em iniciativas várias, da reflexão à prática. Diferentemente da erudição, a cultura só se consegue fazendo e ousando. Ficam aqui alguns «sinais de pista» para esse caminho aberto.

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto
Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais

 

Preâmbulo

Como preâmbulo à reflexão sobre a prática dos chamados «tempos livres», gostaríamos de tornar à desafiante afirmação com que o Conselho Pontifício para a Cultura justifica o despertar da Igreja para uma renovada presença no campo das Culturas: é que importa abordar a realidade «não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e até às suas raízes, à civilização e às culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes termos têm» (Para uma Pastoral da Cultura, 1999). De facto, a experiência cristã, que é um humilde e nunca concluído caminho de abertura à verdade, deve constituir, na diversidade e oportunidade dos tempos, das linguagens e dos lugares, um encorajamento a cada mulher e a cada homem para prosseguir na procura da verdade. Ecoam com (im)pertinência profética, nesta hora, palavras recentes do Papa Bento XVI: «A humanidade precisa de perguntas. Quando já não são feitas perguntas, até às que se referem ao essencial e vão além de qualquer especialização, deixamos de receber respostas» (21 de março de 2007).

Desde 2004 que, com metodologias e em contextos diversos, o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura tem suscitado uma reflexão acerca da problemática dos tempos livres. É um horizonte onde se destacam aspetos inegavelmente positivos, que representam um limiar de esperança para a contemporânea construção da vida. Mas as dificuldades e os conflitos que o rodeiam não devem também ser escamoteados, até porque são sintomáticos de uma crise mais vasta, crise antropológica e de sentido para a existência.

Cabe-nos aqui agradecer a todos aqueles que deram a esta reflexão o seu contributo esperançado (e foram muitos ao longo destes anos em que a temática se maturou: desde referentes culturais a universitários, gestores e programadores de cultura, artistas, personalidades de fora e de dentro do espaço eclesial católico). Na diversidade das mundividências e dos registos, talvez todos possamos acordar no reconhecimento de que «a humanidade precisa de perguntas».

 

I

1. Somos feitos de tempo

Uma reflexão sobre a importância do tempo livre na cultura contemporânea ganhará se começarmos por analisar a condição temporal da existência humana em correlação com a sua necessária liberdade. Tempo e liberdade implicam-se.

A condição histórica da identidade pessoal assinala-nos o seu campo próprio de ação, de pensamento, de relacionamento: a intratemporalidade. Dentro do tempo, cada um transforma o tempo-físico no seu horizonte de possibilidades, figurando-o e transfigurando-o. É nesse tempo-humano que se joga a existência, na relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Como lembra Heidegger, «o fundamento ontológico original da existência do "ser-aí" é a temporalidade». E a temporalidade confronta-nos com a finitude que nos é própria, com o horizonte último e certo, ainda que na suspensão do «quando». «A história diz: Homem, desde a partida / volta a tua atenção para o teu fim / por mais alegre que seja a tua vida» (Todomundo, texto anónimo do século XV).

Entre o nascimento e a morte: a historicidade é não só esse intervalo, mas a construção - que necessita de tempo - que nele é permitida fazer. Os acontecimentos do passado pessoal que, consciente ou inconscientemente, deixam raízes (memória), marcam modos de relação e organização do presente; o futuro que se projeta está já a orientar o presente que se vive (em esperança); e este, que é verdadeiramente o único tempo existente, está sempre em desaparição (tempus fugit - o tempo é o único inimigo que nos fere fugindo), e tanto pode ser o tempo da atenção como da dispersão.

O homem é tempo. Ainda que em si experimente o desejo de eternidade, ele é temporalidade num corpo próprio e num espaço. E não poderia experimentar esse desejo, ou outro, se assim não fosse. Agostinho de Hipona, ao analisar o tempo a partir da eternidade, percebeu bem essa «deficiência ontológica» do tempo humano, ser que lhe falta ser, marcado pela imperfeição, pelo inacabamento. Mas essa comparação com a ideia-limite permite também perceber o que pode intensificar a experiência temporal, abrindo-a à esperança. Afinal, medimos a eternidade pelo tempo, ou o tempo pela eternidade?

 

2. O tempo como condição de liberdade

O tempo é a condição de possibilidade para conjugar o verbo «tornar-se». Vir-a-ser aquilo que se é. Essa é a relação que no tempo se estabelece entre verdade e liberdade. Não a verdade como adequação do intelecto ao objeto, mas a verdade como acordo consigo mesmo: o deixar ser, o revelar progressivo da verdade que já é. Portanto a mediação temporal é essencial à libertação. A liberdade é uma ação em processo. Como o homem. Como o tempo.

Se o homem é tempo, a expressão comum: «não tenho tempo», significa mais profundamente: «não me tenho» ou «outro me possui». A despossessão de si mesmo será uma das características que a vivência hodierna do tempo livre como entretenimento pode causar. Assim, se o tempo é condição de possibilidade da liberdade humana, libertar o tempo é condição necessária para a realização pessoal.

 

3. Elogio do tempo livre

O caráter lúdico da existência, a festa, o divertimento, mais ou menos organizado, tomou formas distintas ao longo da história e nas diversas culturas. Aí plasmava-se o Homo ludens, e manifestava-se a impossibilidade de definir o homem a partir da caracterização unidimensional do Homo faber. A gratuidade do lúdico mostra uma dimensão existencial que não podemos negligenciar, abre uma clareira no utilitarismo habitual com que se pensa o tempo (time is money) e, em consequência, o homem. Como anteriormente vimos, pensar o que se faz do tempo é refletir como se define o homem.

Fica assim indicada uma possibilidade de entendimento do tempo livre. Ele não é apenas um tempo «entre» tempos, já ocupados, mas interroga-nos, antes de mais, sobre a realização pessoal e social que projetamos, sobre o projeto que pessoal e socialmente desejamos para as nossas vidas. Mesmo o descanso autêntico pede para ser enquadrado nesta dinâmica maior da responsabilidade pela realização pessoal e social. O tempo livre é tempo de integração. De enriquecimento cultural, pessoal, afetivo. De exercitação do músculo da imaginação e da criatividade. De explicitação da vida interior.

A democratização, o incremento das propostas culturais de vivência dos tempos livres são aspetos positivos de uma mutação profunda nos modos de vida, consolidando uma consciência do direito ao bem-estar e à qualidade de vida. Assim, importa reconhecer com alegria a utilização do tempo livre na contemporaneidade, como fator de desenvolvimento e acréscimo que dá vida à vida e não apenas como expressão do mercado.

 

4. Novas expressões de uma realidade humana de sempre

No prelúdio às aventuras do seu Fausto, Goethe colocou na voz de um diretor de teatro as seguintes palavras:

Quem cá vem é para ver, quer sensação. 
Se lhe enchermos o olho com enredos, 
A multidão fica de boca aberta, 
E vós ganhais com isso fama a rodos, 
Sois homem de sucesso, pela certa. 
A massa só pela massa se conquista, 
Cada um colhe aí o que lhe agrada. 
Quem muito oferece, a cada um assiste, 
E toda a gente sai daqui encantada. 
Dais uma peça? Então dai-a em pedaços! 
Com tal guisado não tereis fracassos: 
É fácil de servir, de imaginar.

Pensar o entretenimento como característica antropológica e cultural não nos encerra no presente. Como percebemos na citação de Goethe, e poderíamos identificar inúmeros outros exemplos em diferentes épocas históricas, o entretenimento não é uma marca exclusiva do nosso tempo, mas a contemporaneidade dá-nos novas coordenadas onde devemos procurar a compreensão deste fenómeno social, sem enfatizado otimismo nem pessimismo irredutível.

Nas sociedades ocidentais - e vale a pena não esquecer que a grande maioria da humanidade não se inscreve nesta análise -, a revolução industrial, com o progresso técnico, a maior facilidade nas vias de comunicação e a complexificação do tecido urbano, serve de marco à mutação na cultura: esta ganhou mobilidade, expansão, e um notável lugar na expressão das sociabilidades. Desde o livro de bolso à multiplicação dos teatros (e, posteriormente, dos cinemas), das tertúlias e jantares literários às sociedades recreativas de bairro ou clubes, democratizaram-se os hábitos de uma vivência do tempo, que passou a estar aliado ao prazer e à diversão, facto que se reforçou com as progressivas conquistas de direitos laborais. A isso respondeu uma indústria do entretenimento: eventos desportivos de massas, museus, parques temáticos, centros culturais e multiusos, salas de concertos, editoras, estúdios cinematográficos, o desenvolvimento do turismo à escala planetária (e já galáctica). Assistimos, também, a um ritmo sempre intensificado, ao desenvolvimento dos meios de comunicação e divertimento: a televisão, o vídeo/DVD, as consolas e os videojogos, e a mais relevante pelas suas consequências presentes e futuras: a Internet. Disponível hoje em qualquer lugar, a qualquer momento, possibilitou uma multiplicação de canais televisivos, de «sítios» de conversação, plataformas de troca de informação - relevante e irrelevante, o que implica uma maior (in)capacidade de a filtrar -, de divulgação científica e artística, de projetos de solidariedade e de exponenciais oportunidades de entretenimento «em linha». Criar a sua própria rádio, os seus filmes ou textos e divulgá-los, permitindo que milhões espalhados por todo o mundo os encontrem, é hoje muito fácil e rápido - e se este surto imenso de criatividade tem construído experiências de extraordinário impacto (veja-se alguns exemplos da chamada blogosfera), nem sempre a facilidade e a rapidez se têm revelado fiáveis. Paralelamente às vantagens, as óbvias e as pressupostas, fica também facilitado o voyeurismo e a fragilização de valores fundamentais da pessoa e da dignidade humana. A «Rede» cresce a cada dia, dividida entre a possibilidade de divulgar e desenvolver formas de cultura locais ou minoritárias e a imposição de uma cultura global uniformizada; entre as oportunidades de escolha que se nos abrem e os traços que a Rede regista e guarda dos gostos pessoais de cada utilizador. A questão introduzida pela Internet não é o bem ou o mal do dispositivo em si, mas a sua potenciação. Urge ter presente que todas estas mutações criam uma nova conceção e apreensão do espaço e do tempo e revelam uma nova configuração do mundo e do sujeito.

As novas plataformas tecnológicas poderão ser uma oportunidade civilizacional para o melhor e para o pior. Aqui se decide se nos resignamos à mera condição de espectadores, que acatam o défice cultural que hoje é servido pelos grandes conglomerados mediáticos, mais centrados na lógica do lucro e das audiências a todo o custo, ou, pelo contrário, se escolhemos ser agentes críticos e criativos nas possibilidades de difusão e diversificação culturais que podem ser extraídas dos novos meios tecnológicos.

 

5. Espectadores na sociedade do espetáculo

Deparamos, na atual conjuntura cultural, com uma dificuldade dramática na distinção de antinomias clássicas: superficialidade/profundidade; verdadeiro/ficcional; real/virtual... hoje misturam-se e interpenetram-se. Se o mais fundo está na pele, se as notícias e a novelização do quotidiano se sucedem numa amálgama indiferenciada, se o espetáculo aspira a substituir a realidade, vampirizando-a em colagem acrítica, onde encontrar critérios que permitam analisar e julgar?

Não podemos separar a categoria «entretenimento» da de «cultura», mas é-nos exigido um esforço de compreensão deste fenómeno. Se existe, como lhe chamava Montaigne, um «honesto entretenimento», entendido como um prazer que advém, por exemplo, de passar o tempo em companhia de um livro ou em outra atividade cultural, as «indústrias da cultura», procurando entreter a todo o custo, aumentando audiências, públicos e lucros, conduzem à rarefação dos conteúdos, simplificação dos conceitos e consequente banalização. É a ditadura do meio e do lucro. O triunfo de uma cultura portátil, constituída por subprodutos e mega-produções.

Um observador privilegiado da realidade portuguesa a este nível escreveu recentemente: «Nunca o mundo global da informação, da ficção e do entretenimento foi tão rico, complexo, diversificado, estimulante e desafiador; e nunca, desde o início dos canais privados, o mundo da televisão em Portugal foi tão empobrecedor, entorpecedor, alienante, estreito e fechado.» (Público, 16.12.2007). É este o contrassenso maior da atual conjuntura: às possibilidades imensas de produção de conhecimento e de circulação de criação não corresponde a qualidade esperada. É verdade que há alguns sinais de abertura a novas formas de pensar e olhar o mundo, mas muitas vezes são descontinuadas ou relegadas para periferias de horário e de acesso. A televisão, que continua a ser o órgão mais abrangente da difusão de informação e entretenimento, parece ter-se demitido do papel formador e pedagógico que muitos lhe vaticinavam quando surgiu.

Mas há ainda uma batalha mais grave que dir-se-ia estar a ser perdida, quer por omissão, quer por ativa desresponsabilização: a batalha da educação e da qualificação cultural. Os media, pelo seu impacto e omnipresença no espaço público, deveriam ser aliados estratégicos da escola, da universidade, dos centros de criação e de investigação, procurando encontrar uma articulação entre formatos populares e formatos eruditos, para promoverem o conhecimento e o património do passado e do presente. O entretenimento não é apenas distração inconsequente, mas a porta de entrada para a fruição estética do mundo e para os novos patamares de compreensão a que ela abre. É na aliança entre comunicação, cultura e educação que reside um dos eixos essenciais da sociedade do conhecimento e das ditas «indústrias criativas»: a sua lógica pode configurar uma alternativa ao rolo compressor da cultura de massas e ao entretenimento, que é hoje o seu prato forte. Da «distração organizada» devemos passar para uma nova organização da atenção: ao mundo dos outros, a si mesmo, ao imemorial, ao futuro que legaremos aos que virão. Em resumo: a ocupação do tempo livre assemelha-se, muitas, demasiadas vezes, a uma subtil colonização dos espíritos, a uma forma de controlo que, distraindo do essencial, destrói a própria essência do que devia ser: um tempo libertado para criar, imaginar, expressar-se, escolher de modo autónomo e potenciando/alimentando essa autonomia. Uma certa infantilização, que não exige mais nem desafia à maturidade, ganha terreno. Sobre tudo e todos paira a mesma mitologia, que é no fundo a da omnipresente cultura diminuída que vive do zapping, da montagem, da sobreposição ruidosa, do fragmento inócuo.

Recebemos o mundo e a realidade cada vez mais em abstrato. Falta o tempo para a interiorização do efeito. E esse tempo demorado, essa lentidão, é fundamental para o que há de específico na formação pessoal e que está na base da cultura: a libertação da própria pessoa, a sua felicidade.

 

6. Construindo a própria casa

Um fenómeno que vários índices confirmam nas vivências contemporâneas é a angústia e a violência associadas ao tempo livre: acumulam-se ansiedades, insatisfações e conflitos. A excitação por uma felicidade idealizada segundo os padrões dominantes, a forte pressão do contexto cultural, o excesso de expectativas (quase com um valor compensatório, para não dizer justificativo) que se coloca na experiência dos momentos de entretenimento - geram vácuos de sentido, e abrem espaço à rutura individual e social. De facto, este não é propriamente um problema novo, mas também por isso deve ser olhado de frente, até porque a violência ganha uma tutela e uma capacidade de ação devastadoras. Escreveu Eric Weil: «Se, obtido tudo o que razoavelmente se pode desejar, as pessoas estão ainda insatisfeitas e se todo o mundo partilha do mesmo sentimento de insatisfação, pode então desencadear-se o recurso a coisas não razoáveis. Estamos então de acordo num ponto, a saber: que a violência pode tornar-se o único verdadeiro passatempo.» Infelizmente todos vemos, ouvimos e lemos que é assim.

É acerca da dificuldade de administrar, organizar e viver a liberdade própria que devemos refletir, quando olhamos para o tempo livre. Porque este tempo de descanso ou diversão, tempo libertado, poderá ser um indicador para compreender que tipo de humanidade queremos construir. Formar para o tempo livre é educar para a liberdade. Dar os instrumentos para que cada um construa a sua própria casa, e não espere uma vida pré-fabricada. Que cada um conheça as suas verdadeiras necessidades, emoções, desejos mais íntimos para poder escolher quer o seu tempo, quer a sua vida. Isso é verdadeira autonomia. E para isso é tantas vezes preciso «perder» muito tempo livre. Não ter medo da interpelação do tempo nem fugir a enfrentar-se nesse espelho crítico. Talvez esta amalgamada realidade seja também uma hora para a sabedoria.

 

II

7. «Aquele que habita nos céus sorri» (Sl 4,2)

A narrativa do Livro do Génesis, que serve de pórtico à Revelação Bíblica, descreve em chave sapiencial o mistério da criação e ousa apontar-lhe uma finalidade. De facto, no «repouso» que remata a atividade criadora de Deus, sempre a hermenêutica crente sondou uma espécie de plenitude a que o Ser Humano deveria também aspirar. Esse tempo, que sucede ao ritmo laborioso e múltiplo dos afazeres, constitui uma verdadeira libertação do tempo, pois permite a degustação profunda da obra criada e a consciência de si como experiência concreta de bênção (Gen 1,2-3).

Se é verdade que o casal humano aparece investido por Deus da missão de pastorear o mundo criado, assegurando o seu crescimento, homem e mulher surgem sobretudo como parceiros de um itinerário que não separa a atividade criadora do seu significado maior na ordem do ser. É curioso o refrão que acompanha as tarefas dessa semana primordial: «Deus viu que era bom [tôb]» (Gen1,4.10.12.18.21.25.31), e que a venerável tradução dos LXX traduz por «Deus viu que era belo [kalón]». A atividade permanece inconcludente, e torna-se facilmente exercício mecânico e estéril, se não é acompanhada por essa avaliação da sua bondade e beleza. São Tomás de Aquino, no seu arguto comentário ao De divinis nominibus de Pseudo-Dionísio, sustém precisamente que esse é o motivo da criação. Deus criou o Universo com a finalidade de o tornar justo e belo, isto é, capaz de refletir a Sua beleza. Uma existência que não espelhe a dignidade e a densidade do humano é uma existência diminuída.

 

8. Há uma promessa que nos conduz

A Abraão, o primeiro dos crentes, Deus ordena que olhe o céu na sua vastidão inumerável e perceba nesse infinito uma espécie de gramática para a promessa que ele é chamado a viver (Gen 15,5): «Conduzindo-o para fora, disse-lhe: "Levanta os olhos para o céu e conta as estrelas, se fores capaz de as contar". E acrescentou: "Pois bem, será assim a tua descendência".» Abraão, que perdera já a esperança de uma descendência, vai gerar na velhice um filho que receberá o nome de Isaac, isto é, «Que Deus sorria». A raiz do riso e do gozo segundo a Bíblia é, assim, a participação na surpreendente economia da Salvação. Começa por ser não a alusão a um momento ou forma de diversão, mas à experiência global dessa coincidência de Deus na história. Fílon de Alexandria, um sábio judeu contemporâneo de Jesus, faz o elogio deste riso «criado por Deus» e coloca Deus a explicar à esposa de Abraão: «Darás a este filho o nome do sentimento que vais experimentar por causa dele, que será essencialmente a alegria. Chamarás o teu filho pelo símbolo da alegria que é o teu riso.» Ainda sobre o «sorriso» do nome de Isaac escreve Orígenes: «Que há uma promessa que nos conduz ao riso é uma evidência.»

A experiência do regozijo diante do Senhor anima a construção da própria identidade do Povo de Deus e é bem expressiva do sentido dialógico da Fé Bíblica. Com efeito, foi quando o povo partilhou tanto o alimento como o júbilo rente ao Altar de Deus, que ouviu a declaração solene de Moisés: «Hoje tornaste-te o povo do Senhor» (Dt 27,7-9). Uma das responsabilidades irrenunciáveis da Aliança - um mandato! - será precisamente o conservar e celebrar as festas, conferindo ao tempo um regime diferente daquele simplesmente utilitário: o repouso sabático semanal e as grandes festas anuais articulam memória e futuro num tempo libertado, tempo especialmente favorável para a gratuidade e o louvor (cf. Lev 23). Uma nota sem dúvida imprescindível é a ligação da festa ao sentido da justiça social, à partilha e à justeza da redistribuição entre todos. Nesse âmbito se enquadra, por exemplo, a legislação a propósito do Jubileu. Na Mesopotâmia, o termo para liberdade é amargi, que significa literalmente «regressar à mãe» (ou ao lugar/tempo seu gerador). De maneira idêntica em Israel, o propósito do Jubileu (essa declaração ritual de um tempo libertado profeticamente dos seus constrangimentos) era que todos (mesmo os endividados, os escravos, os estrangeiros...) pudessem recuperar o seu património material e espiritual, e religar de novo o coração às raízes do seu contentamento (cf. Lev 25).

 

9. Deliciar-se com a vida

Ficou justamente célebre o capítulo que, na sua obra O Espírito da Liturgia, Romano Guardini intitulou «A Liturgia como jogo», até pelo efeito surpresa de um vocabulário incomum numa obra de teologia. O autor começa por recordar dois passos da Sagrada Escritura que nos remetem para o interior de um tempo libertado, sem porquês, nem para quês: como se fossem experiências de «tempo livre» no interior da Revelação. Um é a visão inicial do profeta Ezequiel, a visão da glória de Deus: «Olhando vi que do norte soprava um vento fortíssimo: uma nuvem espessa acompanhada de um clarão e uma massa de fogo resplandecente à volta; no meio dela, via-se algo semelhante ao aspeto de um metal resplandecente. E ao centro, distinguia-se a imagem de quatro seres viventes [...]. As asas estavam ligadas umas às outras; quando avançavam, não se viravam para os lados; cada um dos seres viventes caminhava sempre em frente [...]. Eles seguiam para onde o espírito os levava; e não se voltavam, quando caminhavam [...]» (Ez 1,4.9.12). E outro passo é o monólogo da Sabedoria Eterna que diz: «O Senhor criou-me, como primícias das suas obras, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma [...]. Eu estava com Ele como arquiteto, e era o seu encanto, todos os dias, brincando [ludens] continuamente em sua presença; recriando-me sobre a superfície da Terra [...]» (Prov 8,22.30-31).

Para Guardini, ludens é uma palavra decisiva, não apenas para entender estes dois textos, mas para descrever o conjunto da proposta cristã: «O Pai eterno compraz-se que a Sabedoria, o Filho, a Plenitude absoluta de toda a verdade, exprima diante Dele numa inexprimível beleza este conteúdo infinito que não visa nenhum fim - e a que poderia Ele visar? -; mas na plenitude mais definitiva do sentido, num puro deliciar-se com a vida, Ele "joga" diante Dele». Nesta linha, a grande romancista Flannery O'Connor chamava a atenção para que se visse como «um empobrecimento da imaginação significa também um empobrecimento da vida religiosa». É claro que o fazer é muito importante, mas o essencial é a afirmação do ser na sua totalidade (ação e repouso, razão e imaginação).

«Alegrem-se os céus, exulte a terra! 
Ressoe o mar e tudo o que nele existe! 
Rejubilem os campos e todos os seus frutos, 
irrompam em danças todas as árvores dos bosques 
na presença do Senhor, que se aproxima» (Sl 96,11-12)

É interessante notar como, nestes dois breves versículos, o poeta faz uso de uma extensa gramática da alegria. Inicia-se com a forma verbal «alegrem-se», que no hebraico corresponde à alegria festiva; continua-se com a exultação entusiástica; acrescenta-se o marulhar das marés, semelhante a estalidos sonantes; avança-se por uma alegria rumorosa, com o termo que serve para descrever também os acampamentos vitoriosos nas pelejas; e chega-se à explosão jubilosa que é a dança. Já David havia dançado «com todas as suas forças diante do Senhor» (2Sam 6,14). Mas aqui trata-se de uma dança em que a criação inteira participa! Como não evocar esse clássico da espiritualidade cristã oriental, Relatos de um peregrino russo: «Quando rezava interiormente, todo o mundo parecia mais maravilhoso aos meus olhos: árvores, ervas do campo, os pássaros, a terra, o ar, a luz... cada coisa parecia dizer-me que existia.» Ou esses versos programáticos de Fernando Pessoa (por interposta voz do Mestre Caeiro):

«A espantosa realidade das cousas 
É a minha descoberta de todos os dias. 
Cada cousa é o que é, 
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, 
E quanto isso me basta.»

 

10. A alegria é o gigantesco segredo

Teria razão Kierkegaard quando dizia que o cristianismo olha para a história a partir do ponto de vista da alegria, e da mais alta alegria? Aparentemente em direção contrária, o poeta francês Baudelaire lembra que, nos relatos dos Evangelhos, nem por um só momento Jesus sorri (quando, no entanto, expressa outro tipo de emoções), retomando curiosamente uma antiga tradição que deriva talvez de uma nota de São João Crisóstomo: «Ele [Jesus] chorou algumas vezes, mas nunca se riu.» Com Nietzsche este aforismo ganha contornos de uma espécie de suspeição generalizada que pesa sobre o cristianismo moderno: o cristianismo surgiria mais credível se os cristãos parecessem satisfeitos. Encontra-se, de facto, a ideia culturalmente difusa de uma quase ausência de alegria nos textos sagrados, na teologia e no viver cristãos, que sublinhariam antes o caminho da exigência moral e do labirinto das culpabilidades. Tal deriva, porém, de uma leitura insuficiente da Boa-Nova cristã, que é desde o princípio o anúncio «de uma grande alegria, que o será para todo o povo» (Lc 2,10). O escritor G.K. Chesterton, conhecido também pelo seu bom humor, desmente os que dizem que o paganismo é uma religião de alegria e o cristianismo uma religião de tristeza: «O comum dos homens viu-se forçado a ser alegre no que dizia respeito às pequenas coisas, mas triste no que se refere às grandes. No entanto não é próprio da condição humana ser assim. O homem é mais ele próprio, o homem é mais semelhante ao homem, quando a alegria é a coisa principal que se encontra nele, e a tristeza é uma coisa acidental. A melancolia devia ser um inocente entreato, uma terna e fugitiva moldura do espírito, ao passo que a alegria deve ser a constante pulsação da sua alma... A alegria é o gigantesco segredo do cristão.»

 

11. Procurar um horizonte antropológico mais vasto

A reflexão sobre os tempos livres tem de ser reconduzida necessariamente a um horizonte antropológico mais vasto, englobando as conceções de homem e de existência. A alegria não é uma distração: é, antes, uma forma radical de atenção àquilo que somos. A alegria não é um produto de consumo rápido, nem é uma questão cuja procura se possa substituir ou calar no coração humano, deixando-a apenas à estratégia comercial das indústrias do entretenimento. «Jesus estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: "Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos"» (Lc 10,21). Na experiência da alegria joga-se a revelação do sentido profundo e mais absoluto de todas as vidas. Não é simplesmente uma forma de bem-estar. Dir-se-ia, antes, uma arte de bem-ser. Jesus, no mistério da Sua Encarnação (mistério que nos provoca para um espanto sem fim!), escolheu a condição humana. Tomou a sério e com realismo as várias situações históricas em que a nossa humanidade se desenvolve, apresentando-Se, desde o princípio, como Rosto da alegria que Deus, face às nossas declarações de impossibilidade, torna possível: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor» (Lc 4,18-19). Um dos dramas da hora presente é que é tão estreito o cânone da felicidade. Os modelos propagados deixam de lado a maior parte de nós. Jesus, porém, ousou ler o tempo do Homem, este tempo quebradiço e opaco que por vezes parece ser o do nosso destino comum, como desenho de uma plenitude maior. A verdadeira libertação do tempo é a que permitir o Homem.

 

12. Definir o tempo pela sua qualidade

«O tempo alcançou plenitude» (peplerotai o kairòs) - lê-se na proclamação inaugural de Jesus, segundo o relato de São Marcos (Mc 1,15). Olhando para a forma verbal empregue (a forma do perfeito, peplerôtai - alcançou plenitude, completou-se), vemos um tempo onde o cumprimento começou, mas que prossegue em efeitos que o presente e o futuro prolongam. Não se trata, portanto, de um tempo meramente pontual, para ser deglutido na vertigem do que passa. Nem é, de modo algum, um mero passar. A utilização que se faz aqui do lexema kairòs revela-se iluminante. Porque se usa, para designar este tempo aberto por Jesus, o substantivo kairòs em vez de chrónos? Há uma diferença entre ambos: o kairòs exprime uma qualidade do tempo; enquanto que chrónos designa a quantidade. O significado fundamental de kairòs é o de uma expressão decisiva do tempo, o seu ponto essencial, fugindo a um entendimento estritamente cronológico. Em autores antigos tão diversos como Sófocles ou Aristóteles, ou já na tradução grega da Bíblia hebraica, kairòs ganha, não raro, um sentido religioso, a ponto de coincidir com a revelação do próprio Deus. Essa é a perspetiva do Novo Testamento, que interpreta o tempo como lugar do irromper de Deus, propício e determinante. De facto, não é o tempo quantificado que dará alma ao mundo, mas o tempo qualificado pela decisão e pela experiência da graça e do dom.

 

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