O termo «ética» relaciona-se com dois étimos helénicos, um mais estrito «ethos», escrito com «épsilon» no início, o outro, «ethos», mais lato, escrito com «eta» no início.
Comecemos pelo segundo, «ἦθος». Este termo significa «habitação habitual», «lugares familiares», «morada»; também «chiqueiro», «toca de leão», etc.; no entanto, também significa «caráter habitual», o que remete para «costume», «uso», «maneira de ser», «hábitos de um ser humano», «caráter».
Ora, estes últimos sentidos, matriciados em «caráter habitual» são coincidentes com os valores semânticos que «ἔθος», o primeiro referenciado, assume.
Daqui, podemos inferir que o termo «ética» se refere, no que à sua origem helénica diz respeito, a um horizonte semântico que indicia isso que é o lugar próprio do e para o ser humano como propriamente humano, passe a referência aos porcos e aos leões, a seu tempo muito significativa.
É à morada humana e ao modo como o ser humano habita o ser que a ética se refere. Assim, a ética é sempre algo de muito profundo, que coincide com o modo próprio de o ser humano habitar isto a que chamamos o mundo, algo que depende sempre do que são os seus atos, a sua atualidade como agente, como sujeito de ação.
Deste modo, a ética reveste sempre um caráter substantivo, que coincide, em termos teóricos latos e em termos de estrita aplicabilidade e aplicação ao concreto da ação humana, com o que cada ser humano é como agente, isto é, como esse que cria o seu próprio ser, a partir de um dado inicial que dele não depende, mas que é a base para tudo o que dele depende em termos de ação e que o constitui propriamente como ser humano, habitante do lugar humano, e não como porco ou leão, habitantes de lugares não-humanos, portanto, propriamente bestiais (sem denotação ou conotação pejorativa).
A ética é o modo de ser do ser humano. E não há outro possível. Todo o ser humano é uma entidade ética ou não é coisa alguma. Diz-se, então, que a ética é o ato constitutivo do que é próprio do ser humano. É a dimensão ética, entendida neste sentido substantivo, substancial e ontológico, que constitui isso que especifica o ser humano e o distingue dos demais seres.
Não há pedras éticas, sismos éticos, cães éticos, sistemas éticos, povos éticos, estes últimos, embora constituídos fluidamente por seres humanos, não correspondem a um ente humano pessoal, única entidade ética possível.
Quer isto dizer que a ética nunca é algo de adjetivo, mas que é sempre algo de substantivo, como já fora afirmado.
A aplicação da categoria da eticidade fora da atribuição possível a indivíduos humanos, isto é, pessoas, é carente de significado. Não faz qualquer sentido uma afirmação como, por exemplo, «esta justiça é ética». A razão é muito simples, não há justiça que não seja ética, pois toda ela depende exclusivamente da ação de alguém que ajuíza e que age no mesmo sentido desse juízo. O que pode haver é um juízo, quer dizer, uma ação judicativa que promova uma injustiça, mas tal não corresponde a algo absurdo como uma «justiça não ética» ou uma «justiça não-justa»; corresponde, sim, a uma ausência de justiça. Esta ausência é, também ela, ética, não como um ato de bem, mas como um ato de mal.
Percebe-se, assim, que é por via ética e apenas que o mal entra no mundo, a menos que se persista em viver em ambiente teórico equívoco, em que se usa o mesmo termo para classificar a ação do juiz corrupto que se vende por qualquer forma de poder e as consequências de, por exemplo, um furacão ou um terramoto (nenhum destes dois últimos se pode prostituir de forma alguma).
O furacão e o terramoto não são entidades tipo sujeito ético, mas o juiz é. Furacões e terramotos limitam-se a seguir o que os princípios físicos da natureza lhes determinam, não têm propriamente possibilidade de escolha. O juiz, por menos inteligente que seja, por mais condicionado que seja, por mais doente que esteja, salvo se nele já nada houver de aparentemente humano, salvo a forma exterior – ainda assim, venerável como tão humana quanto a minha – pode, pode sempre, pode, como Aristides de Sousa Mendes, confrontar poderes muito altos e, ainda assim, escolher, não a conveniência egoísta de um carreirista, por exemplo, mas o bem possível de milhares de pessoas, perante o iniludível mau ato que as espera.
A ética é, então, o domínio próprio da ação humana, de toda a ação humana. Nela encontramos, muito diferenciados, uma Madre Santa Teresa de Calcutá e um Adolf Hitler. Uma, santa; o outro, perverso em extremo. Mas ambos tão humanos um quanto o outro; tão eticamente humanos um quanto o outro; tão sujeito ético um quanto o outro; tão construtores de seu ser um quanto o outro; tão construtores do mundo um quanto o outro.
A diferença reside em que Teresa trabalhou sempre pelo bem comum universal; Adolf pelo bem exclusivo desses que escolheu como seu povo eleito, às custas do bem parasitado a milhões de outros seres humanos. Não haja medo de chamar os entes pelos nomes éticos: Teresa foi uma boa Mulher; Adolfo foi um mau Homem. É esta a diferença; evidência que é, aliás, algo que Hitler nunca aceitaria; mas não é o único.
Quando se relaciona a ação destes dois exemplos extremos de ação humana concreta para com o bem comum, entra-se na dimensão extraética que, no entanto, anda sempre associada à dimensão ética: a dimensão política da ação humana.
Se a ética é a ação humana, toda ela, enquanto referida exclusivamente ao sujeito da ação, como coincidência fontal com este, a política é constituída por toda a transcendência da ação para lá da pura interioridade do sujeito ético, logo que a ação que eticamente nasce no meu seio abandona este mesmo seio e penetra no âmbito da relação com outro ou outros seres humanos, nasce o mundo político.
O âmbito da política é, assim, o âmbito das relações entre os seres humanos. De todas as relações. São estas relações que constituem o que é o complexo ato da cidade, da «polis», cuja expressão quer teórica quer concreta mínima consiste na relação, qualquer, entre apenas duas pessoas, quaisquer.
Note-se que o ato mais poderoso da realidade humana, o amor, é sempre algo que tem a sua origem na interioridade ética de um ser humano e, depois, se transcender essa mesma interioridade, imediatamente se converte no ato político mais poderoso que existe: lembremo-nos de todos os que dão a sua vida em amor pelos outros, no que é o ato humano mais sublime que existe.
Tal dádiva não tem de assumir sempre aspeto de tipo heroico ou épico, mas pode ser algo como o belo ato de uma mãe dar mama ao seu recém-nato, para bem deste, isto é, por amor.
Por último, apenas mais um exemplo: repare-se que o ato de que cada ser humano nasce, a cópula sexual, é um ato político; como políticos são os seus substitutos vários, todos frutos da ação de terceiros relativamente ao nascível, e também entre esses terceiros.
Quer a dimensão puramente ética do ser humano quer a sua dimensão puramente política – ambas abstrações teóricas, úteis, mas realmente falsas – quer o ato sempre complexo que a ambas reúne permeiam tudo o que é propriamente humano.
Esta perspetiva substantiva, relacional integrada e ontológica proporciona um modo muito diferente de perceber a realidade antropológica profunda, inexistente sem ética, política e sua íntima relação. É uma humanidade muito diferente a que, de esta perspetiva, surge.