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Existem sacramentos na internet?

Prosseguimos a pré-publicação de excertos do livro "Ciberteologia - Pensar o Cristianismo na era da Internet", do padre italiano Antonio Spadaro, que a Paulinas Editora lança nas livrarias esta quinta-feira.

O autor, consultor dos conselhos pontifícios da Cultura e das Comunicações Sociais, vem a Portugal nos primeiros dias de outubro para um conjunto de intervenções em Lisboa, Porto e Fátima (cf. "Artigos relacionados").

 

Existem sacramentos na internet?
Antonio Spadaro

A primeira constatação a fazer é que a pergunta começou a partir de experiências concretas e não somente de uma especulação abstrata sobre coisas possíveis: existem realidades na Rede que se autodefinem «litúrgicas». É um facto. Uma das primeiras surgiu, talvez, em 1997, quando Stephen C. Rose começou a colocar on-line o texto de uma «ci bereucaristia» 176. Tratava-se de um simples texto que pedia à pessoa participante que se sentasse diante do computador, lesse em voz alta o texto e, tendo à mão pão e vinho, os ingerisse no momento indicado. Obviamente tratava-se de algo completamente estranho ao que entendemos por «liturgia», não possuindo nenhum dos elementos próprios dessa experiência e não prevendo a mais mínima forma de interatividade e partilha. Não é de estranhar, pois, que a experiência tenha durado muito pouco.

O reverendo Tim Ross, ministro metodista inglês, tinha imaginado ser possível um communion service no Twitter. A celebração nunca aconteceu, porque as autoridades da sua comunidade eclesial lhe pediram que a cancelasse, embora considerassem válida a motivação que tinha levado o reverendo Ross a pensar nela, isto é, uma «expressão renovada da fé e do culto no contexto das novas formas de media sociais eletrónicos». A celebração fora pensada como uma remote communion («comunhão à distância»), que acontece quando aqueles que recebem as espécies eucarísticas o fazem no mesmo instante, mas não no mesmo local físico do celebrante, como explica o reverendo Ross, citando também o caso de uma paróquia da Church of Scotland, que realiza celebrações on-line para reunir de modo constante os fiéis que, esparsos em várias ilhazinhas, de outra forma não teriam como manter-se unidos.

Ele afirma que, para se considerar válida a celebração, é preciso entender como válida a remote communion, além de considerar de tal forma também a comunidade cristã que se reúne na Rede, fiando-se no facto de que Jesus disse: «Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles» (Mt 18,20), sem ulteriores especificações. De facto, sustenta Ross, é a presença de Deus que faz de um grupo de pessoas uma comunidade, e não a sua proximidade espacial. Desse modo, o sentido de comunidade dado à rede social seria sobreposto (com o risco de coincidir) com o da comunidade eclesial.

A Igreja Católica insiste sempre no facto de que é impossível e antropologicamente errado considerar a realidade virtual «capaz» de substituir a experiência real, tangível e concreta da comunidade cristã visível e histórica, e o mesmo vale para os sacramentos e as celebrações litúrgicas. Por «realidade virtual» entendemos aqui uma experiência multimédia e interativa, efetuada através de um meio de comunicação ligado à rede 181. O documento La Chiesa e internet (2002), do Pontifício Conselho das Comunicações Sociais, foi bastante claro:

«A realidade virtual não pode substituir a real presença de Cristo na Eucaristia, a realidade sacramental dos outros sacramentos e o culto assistido no seio de uma comunidade humana de carne e osso. Na Internet não existem sacramentos. Mesmo as experiências religiosas que são possíveis ali, pela graça de Deus, são insuficientes, se separadas da interação do mundo real com os outros fiéis» (n.º 9).

A resposta é clara e salvaguarda de qualquer desvio que afaste a dimensão sacramental da incarnada de sinais visíveis e tangíveis. Aliás, o conceito de «sacramento virtual», no sentido estrito, basear-se-ia no facto de que seria um avatar a receber a graça de Deus que, dele, se transferiria à pessoa da qual ele é uma extensão. Por detrás deste pensamento, está a ideia redutora de que receber um sacramento significa, em essência, ser envolvido simplesmente de maneira psicológica por um evento, real ou virtual que seja. O pathos toma o lugar do logos. Nesse sentido, pão e vinho, assim como a água, no caso do Batismo, seriam todos elementos acessórios e, no fim, desprovidos de importância real. Prosseguindo nesta trajetória, a imaginação ativada, neste contexto, tende a traduzir-se naquela «simulação» ou «alucinação consensual», segundo a definição de W. Gibson no seu romance Neuromante, que leva o homem a identificar-se com a situação que desejaria viver e como gostaria de viver, embora não a vivesse efetivamente.

Fica, todavia, em aberto, o campo de uma possível «devoção digital» que pode, de alguma maneira, ser ligada às várias formas de «comunhão espiritual» conhecidas desde sempre pela tradição, como, aliás, é demonstrado também pelo Concílio de Trento 182: é o próprio documento La Chiesa e internet a falar de «experiências religiosas que são possíveis pela graça de Deus», também na Rede.

A experiência de «comunhão» que se daria através da rede social, ligada a possíveis celebrações eucarísticas on-line, certamente se considera como um dos verdadeiros pontos críticos.

A Igreja não é redutível a ser the ultimate social network, uma espécie de rede social definitiva, porque não é apenas uma rede de relações imanentes. Por outro lado, essa imagem das redes sociais vai plasmar cada vez mais a imaginação dos crentes. Basta pensar, por exemplo, na experiência de compartilhar a própria experiência de Deus, durante a Páscoa, via Twitter, mesmo na igreja. Se a partilha ocorresse em momentos adequados, como participação de uma ressonância pessoal, a proposta seria muito interessante, mas a experiência à qual nos referimos, embora não prevendo a remote communion, apresenta ambiguidades insanáveis, se for vivida durante as celebrações «transmitidas ao vivo», porque o perigo é a alienação: compartilha-se a própria experiência com outros ausentes, acabando por negligenciar aquilo que se está vivendo com os fiéis presentes. Resta ainda, em discussão também, o sentido da participação como «tomar parte» de uma celebração que não é absolutamente redutível ao seu elemento psicológico ou ao «entusiasmo» em que, às vezes, se transforma o sentido da participação num videogame.

O risco fundamental que parece igualar as experiências de liturgia na Rede é o de uma deriva «mágica» capaz de empalidecer, até cancelar o sentido da comunidade e da mediação eclesial «encarnada», para exaltar, em vez disso, o papel da técnica que torna o evento possível.

Qual é a diferença entre um concerto ao vivo, seguido de uma transmissão ao vivo on-line com o máximo da técnica, que permite uma experiência «imersiva» (conexão veloz, bom equipamento de áudio doméstico...) e uma celebração litúrgica? É claro que aqui surgem as mais amplas questões que dizem respeito às liturgias sacras e às liturgias profanas como as que se «celebram» nos estádios, nas grandes manifestações ou nos concertos. Porém, o nível de reflexão que a Rede exige é ulterior, devido ao papel da técnica que possibilita a presença «virtual» num contexto como o nosso, em que os media estão como que «soltos» no ambiente ordinário em que vivemos. No fundo, a função «mágica» da Rede consiste justamente em abolir a distância espacial, em nos permitir «captar» o que está longe, em estabelecer um contacto direto e eficaz com o que não está sob controlo, que está distante, «longe» de muitas maneiras.

 

Nota: Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Antonio Spadaro
In Ciberteologia - Pensar o Cristianismo na era da Internet, ed. Paulinas
26.09.13

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