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Franciscus, tempo superior a espaço

Após indicar, em Evangelii gaudium, § 222:, que há «um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.», Franciscus prossegue, no § 223 (versão constante da edição Paulus Editora, sem identificação de quem traduziu, p.158):
«Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo e ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos de uma cadeia em constante crescimento, sem marcha-atrás. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificarem em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes».

Sem fazer inútil alarde de vã erudição, Franciscus toca em questões transcendentais – metafísicas, mas necessariamente ínsitas ao comuníssimo concreto do real – fundamentais. O facto de usar uma linguagem pastoral, supostamente mais acessível, em nada diminui a grandeza ontológica do que as suas palavras veiculam (a vã erudição nada mais é do que uma bomba de vácuo que enche com nada peliculares odres noéticos).

A primeira afirmação que se encontra no trecho em apreço é muito clara: «Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos». O tempo é um modo de medir o absoluto da diferenciação que constitui o real, todo o real, menos os próprios princípios que, esses, não se diferenciam: constituem os eixos paradigmáticos de possibilidade do real; a sua diferenciação significaria a impossibilidade do real, sequer como possível.

Ora, o longo prazo a que Franciscus se refere não quer dizer ‘muito tempo’, como se de um vazio absoluto se tratasse – com um relógio divino a medir a sua imóvel vacuidade –, mas “muita diferenciação”, muito movimento, ‘muito ato’, quer dizer, “muitos atos”, atos de que se compõe, como diferentes e apenas como diferentes – ou haveria literal confusão – o real. Tempo, mais ou menos tempo, significa, assim, realidade de atualidade, sem o que tal realidade de atualidade nunca seria. ‘Muito tempo’, porque o tempo não é realidade magicamente autónoma, quer dizer «muitos atos».

É este o sentido metafísico de «trabalhar a longo prazo»: uma obra, um «ergon», que é uso de “energia”, de ato, trabalho aberto à possibilidade de realização da perfeição possível para cada possível ato, o que não pode suceder, se se trabalhar sem este respeito pelo “tempo longo”, pela necessária realização de todas as possibilidades que cada realidade incoativa consigo transporta. Lembre-se o que isto significa a partir de Génesis I, em termos do absoluto de possibilidade que Deus pôs em cada uma de suas criaturas e de que foi possível desenrolar tudo o restante que se seguiu (e tudo era incoativamente bom em termos ontológicos, mesmo a possibilidade de negar tal bem).

Restringir voluntariamente o escopo próprio de tempo – de realização do possível – para algo, é matar incoativamente possibilidades que só podem ser realizadas se tal tempo não for abreviado. Esta morte do absoluto do possível incoativo é o que surge nas palavras de Franciscus como «a obsessão pelos resultados imediatos». Concretamente, tal mania impede, por exemplo, o exercício devido de reflexão, o que impede o exercício da prudência, sem o que não pode haver justiça. Este exemplo basta.

Este princípio fundamental, em humano cumprimento, «Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe». A primeira parte desta afirmação complexa dispensa especial comentário; já a segunda parte não. Há grande profundidade de pensamento quando se menciona «as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe».

Que «dinamismo» é este? Antes de mais, atribua-se o mérito devido a quem teve a intuição desta condição metafísica: Heraclito. «Dinamismo» não deve ser confundido com algo como ‘mexer-se muito’: o termo génese é o grego «dynamis», que, entre outros sentidos, aponta para «poder», «potência», «potencialidade», tudo respeitante ao sentido de «poder vir a ser», isto é, de «possibilidade».

O absoluto de possibilidade que – indeterminado e virtualmente infinito – o real sempre encerra não é dominável por qualquer finita inteligência ou finito poder, por mais iludidas que tais entidades sejam.

Sendo assim, o real, dinâmico, quer dizer ‘prenhe de possibilidades’, implica que haja, sempre, uma capacidade de acompanhamento do surgir de tais possibilidades, o que implica prudência, etc., ou seja, longo, por vezes, longuíssimo «tempo», por parte do humano acompanhante, passível de gozo do possível bem que tais possibilidades encerram ou de gozo do possível mal que tais possibilidades encerram.

O dinamismo de que fala Franciscus implica que, no real, nada seja ou possa ser garantido – por isso, quer filosoficamente quer em termos de Revelação, as garantias são sempre de tipo metafísico, isentas de tempo, de movimento, de potencialidade, eternas –, o que, por sua vez, implica uma permanente atenção ao movimento, à diferenciação que o origina, de modo a poder, no que é humanamente possível, governar – é o termo correto, de origem platónica – a ação humana no seio de tal movimento.

Quanto ao movimento como um todo – infinito na relação com o nada? –, tal governo não cabe ao ser humano, pois, simplesmente, este não é de tal capaz, capacidade de que está infinitamente afastado. Eis o sentido de uma ecologia que implica o governo de si próprio – humano, pessoal e político –, em conformidade com o restante do todo.

Ora, este governo de si no tempo não cria qualquer ilusão de posse de algo que não de si próprio. Já a ilusão da posse de espaço cria a legenda psicológica pessoalíssima de um poder alargado, tão vasto quanto os metros quadrados de tal ilusão da posse de espaço.

Todavia, de que espaço se é verdadeiramente dono? Ao modo de Midas, senhor de todo o ouro e de todo o espaço que tal ouro ocupava, e que era todo, sendo o ouro tudo? E de quê serve ser como Midas? Nem sequer a vaidade da inveja ou da emulação política já é possível, pois já só há Midas e ouro.

No fim, morto o senhor humano de todo o espaço, nem do espaço da cova ou do jarro das cinzas já se é dono. Em termos puramente laicos, já não se é dono de coisa alguma, pois o nada do morto já não pode possuir coisa alguma.

Tem Platão razão, mais de três séculos antes de Cristo ter vindo ao mundo, quando, na sua Apologia, dedicada ao amado Mestre Sócrates, põe na boca deste a única verdadeira alternativa que interessa, mas, sobretudo, a única verdadeira alternativa que há: ou a morte é para o nada ou é uma metamorfose, que transforma a diferenciação criadora do tempo em algo de diverso, em que a diferença apenas acrescenta ser, sentido, sem que possa haver qualquer forma de entropia.

O mais é irrelevante, tão irrelevante quanto a cor das sandálias do pescador.


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Imagem: Aron Visuals/Unsplash
Publicado em 12.05.2025

 

 

 
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