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Haverá uma beleza que nos salve?

A beleza pontapeia-me, isso sim.

 

Se a beleza salva não sei que não me sinto salvo e me dói ainda a imperfeição dos dias; e toda a vida andei pelos sítios onde a beleza se arrecada, museus, teatros, livros, cinemas, armazéns daquilo que fomos considerando belo e todos os meses a vida, o ruído dos dias altera, fazendo ver, incidindo, iluminando, desfeando, voltando a trazer à tona da história o que foi feio e nos incita. Terá dito Cocteau, com o seu brilhantismo epigramático, que a diferença entre arte e moda é que esta será bela hoje e feia amanhã, aquela feia hoje e bela para sempre. Mas porque procuro tantas vezes o "Cristo" de Velasquez, porque me recolho sempre naquela sala do Museu do Prado perante este corpo exaltantemente sem dores, corpo que não confessa o sofrimento perante o negro do fundo, noite dos homens? Que me faz parar a cada vez que o encontro, menino quando o descobri ou já velho como no passado mês de Fevereiro? A beleza ou o que nela é exaltação moral, princípio ético, ensinamento de vida? E existe beleza sem esse ensinamento, não é esse ensinamento o que torna belo o desarmonioso? Pois quando, na mesma Madrid, me arrebata a vista da cidade de George Grosz, tumulto, confusão, ruínas, convulsões da morte, asfixia da vida num fundo vermelho que explode não é de beleza, de harmonia que falo, mas da gigantesca capacidade de atravessar o real, de o trespassar, de o ver e fazer ver. Mas porque comprei em Palermo o album sobre Antonello di Messina, os doces retratos, para que os quero aqui ao meu lado, os rostos calmos que me reconfortam ao cair dos dias sempre iguais e sós?

Não sei se a beleza me salva, eu que me procuro nos inacabados escravos de Miguel Angelo, aqueles em que o corpo começa a surgir da bruta pedra, mas a pedra ainda lá está, aqueles que ainda marcam o escopro e a brutalidade do gesto, aqueles que lançam ao futuro o seu incabamento, eu que neles inscrevo a continuação dos meus dias.

A beleza não salvará, que ainda me dói a injustiça e a solidão das noites: mas incita-me, exorta-me, obriga-me. Não posso ser o mesmo ser centrado em mim ou na minha suposta dor, queixume ou lágrima auto¬complacente depois do estóico "Cristo" de Velasquez, não posso permitir que o mundo não se deixe trespassar por qualquer olhar novo, tumulto ou temporal, não posso permitir que a pedra não seja gesto para um futuro.

E se a beleza me exorta, me obriga a viver, talvez me não reconforte, exige é que ultrapasse os limites do meu trabalho: e continue a fazer com que a pedra seja músculo, que a tela voe, que o som cante. Ou como eu queria esta Primavera subir a San Pietro in Montorio, ficar lá uns momentos, vitória dos homens sobre a natureza, o silêncio das pedras, o seu canto de séculos. Não salvará a beleza, que salvação é outra, a dos homens e da sua imperfeição. Mas a beleza dos séculos pontapeia-me a vida, todas as manhãs, ao acordar: obriga-me a encontrar o gesto simples.


 

Jorge Silva Melo
In Observatório da Cultura 2 (abril 2003)
Imagem: Bigstock.com
Publicado em 01.09.2025

 

 
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