Decidiu o júri, em 'precipitada' deliberação, dedicar-me o Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes, 2013.
Agradeço, comovido e emocionado, tamanha honra a que não me consegui furtar, que reúne tanto de inesperada distinção como de acrescida responsabilidade. Distinção que nunca esteve no horizonte pessoal de um soldado de causas. Um modesto combatente que, em espírito de serviço comunitário e dentro de limitadas possibilidades, tem procurado interpretar a vontade do Senhor da história e Pai ultra-misericordioso, que não se cansa de colocar a sua incansável compaixão no coração (miseri-cor) do servo humilde.
Agradeço ao júri, nas pessoas de Sua Excelência Reverendíssima, D. João Lavrador, Cónego João Aguiar e Dr. José Luis Ramos Pinheiro (RR), Rev. P. António Vaz Pinto S.J., Doutor Guilherme d'Oliveira Martins e Professora Doutora Maria Teresa Dias Furtado, e Rev. P. José Tolentino Mendonça, a sua grande generosidade na outorga de um prémio com este enorme significado a uma pessoa que mais não tem feito do que cumprir o seu dever de cristão e de cidadão empenhado na vida da polis.
Agradeço por fim a todos os que me acompanham hoje a Fatima. Em primeiro lugar à minha pequena-grande igreja doméstica que comigo partilha, de perto, a peregrinação do Homo Viator: a minha mulher, os meus 13 filhos dos quais 11 conseguem estar aqui presentes, os meus 6 netos - a minha sobremesa da vida - dos quais tenho a grata representação de 3 dos residentes em Portugal. Depois, a prima Alberta companheira de todas as horas, os compadres e companheiros na Fé cujo testemunho de amiga fidelidade me ilumina e confere alento para continuar o justo combate sem desfalecimento.
1. ln memoriam do Rev. P. Manuel Antunes, patrono do prémio
1.1. Três coincidências, totalmente circunstanciais, mas com carregado simbolismo pessoal
A primeira é que a 9.ª edição do prémio é atribuída a um pai de 9 filhos.
Mas, presumo eu, a retio que preside à outorga deste galardão não se prende com desempenhos demográficos, no que, aliás, o mérito teria de ser partilhado com, diria até, principalmente titulado pela minha mulher, Maria do Rosário.
Permitam-me, de seguida, que assinale outra coincidência, esta bastante mais misteriosa: Manuel Antunes morre em 18 de Janeiro de 1985, com 66 anos e 2 meses, ou seja, exactamente com a minha idade. Não vejo nesta segunda coincidência nada de profético nem antevejo qualquer fatalidade superveniente a este prémio. Assinalo a coincidência etária essencialmente para apreciar o enorme legado que nos deixa Manuel Antunes, em pensamento e por escrito, testemunho vivo de uma vida de homem de cultura de rara densidade e permanente dedicação a Deus e à Pátria Lusa, os seus dois grandes e imorredoiros amores.
Mas, como diz o rifão popular, não há duas sem três.
Fruto da imensa generosidade do saudoso P. Luis Archer pertenci ao Conselho Editorial da Brotéria durante cerca de uma década. Pois, Manuel Antunes realiza uma actividade editorial notável nesta mesma revista, a partir de 1965, quer como seu director durante cerca de 20 anos, quer como seu colaborador insigne - diz quem melhor detém as memórias da revista que se lhe devem números integralmente escritos pelo seu punho, sob 126 pseudónimos!
1.2. Homenagem ao educador, Professor Manuel Antunes
Na Faculdade de Letras, as suas lições de História da Cultura Clássica e de História da Civilização Romana, marcaram sucessivas gerações de alunos desde 1957. Alunos de todas as condições, credos ou ideologias, seja aqueles que regularmente seguiam as suas aulas, seja aqueles que apenas o faziam esporadicamente, como era o caso dos que apenas frequentaram os seus cursos livres (para totós como eu), e que, ao invés do comportamento discente habitual (que privilegia a "invisibilidade pedagógica") disputavam animadamente as primeiras filas do auditório. Alunos que, por norma, se tornavam seus discípulos e admiradores pouco tempo decorrido sobre os primeiros contactos com o Mestre. Discentes que se sentiam quantas vezes esmagados com as suas intermináveis citações em latim e grego clássico, apenas decifráveis mediante intenso escrutínio da sua grossa sebenta de apontamentos que fazia acompanhar as suas fascinantes aulas.
Frágil, até franzino no porte físico, voz abafada, ele transpirava um paradigma de humildade no trato e no magistério, que se sobrepunha à esmagadora erudição com que falava e discorria sobre cada tema. Recordo, a esse propósito, um episódio curioso. Decorria a revolucionária década de 60. Manuel Antunes já pontificava na Faculdade de letras como professor eminente de Cultura Clássica, cadeira transversa às variadas licenciaturas ministradas na Faculdade de letras da Universidade de Lisboa. Abre uma vaga para professor de História da Idade Média e Manuel Antunes é convidado, por deliberação unânime do claustro docente para ocupá-Ia. Pois, apesar da veemência com que é instado a aceitar esta outra cátedra ele declina, inflexível. Já bastante depois, viemos a conhecer o seu desabafo para a sua assistente: "Como poderia assumir tamanha responsabilidade, eu que estudo o período medieval apenas de há 10 anos a esta parte!"
Por detrás de uma aparente fragilidade escondia-se uma força interior, uma alma gigante que facilmente seduzia e inspirava o auditório mais céptico. Nos exames orais sabia combinar a justa exigência com a generosidade humana de lobrigar no examinando aquela pessoa acabrunhada que, com incentivo, um olhar cúmplice, ou um gesto afável, poderia desabrochar. Quantos ex-alunos se recordam hoje, com saudade, de provas em que a afabilidade do Mestre ajudou a superar a inibição do aluno, em que uma palavra de compreensão os levou a encontrar um fio condutor e salvífico, no meio da confusão momentânea.
Dentro da economia do tempo que me é concedida, deixo um último apontamento sobre o legado de Manuel Antunes. Ele publica em 1979 um oportuno ensaio denominado Repensar Portugal. A actualidade desta curta mas profunda reflexão é indesmentível sendo ainda portadora de uma notável presciência. Nessa obra, de leitura obrigatória, pode ler-se a seguinte passagem:
"De todo um povo. Que não apenas de um grupo. Importa que as alegrias e as tristezas, os encargos e as esperanças, os sofrimentos e as exultações que, por princípio, são comuns afectem real, efectiva e equitativamente a todos. Sem panas e sem parasitas; sem privilégios e sem proscritos; sem humilhados e sem disfarçados. É isso que articula a ligação de todos os do mesmo espaço social. É isso que Permite ao conjunto sobreviver nas horas de prova".
Dele, terá Almada Negreiros dito um dia: "Este homem é só espírito".
2. Da Árvore da Vida
São múltiplas, e sempre perpassadas de belíssimo simbolismo, as referências à Arvore da Vida no livro Sagrado.
«Os seus caminhos são caminhos de delícias, e todas as suas veredas paz. É árvore da vida para os que a seguram, e bem-aventurados são todos os que a retêm.» (Provérbios 3, 17-18)
«O Senhor Deus preparou um jardim em Éden, lá para o oriente, e colocou nele o homem que tinha modelado. Da terra, fez nascer toda a espécie de árvores que eram agradáveis à vista e davam bons frutos para comer. No meio do jardim estava a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal.» (Génesis 2, 8-9)
Mensagem à Igreja de Éfeso: «Quem tem ouvidos para ouvir, preste atenção àquilo que o Espírito diz às igrejas. Aos que vencerem hei-de dar-lhes a comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus.» (Apocalipse 2, 7)
«O anjo também me mostrou o rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro. 2No meio da praça da cidade e de cada lado do rio está a árvore da vida que dá fruto doze vezes por ano, isto é, uma por mês. E as suas folhas servem para curar as nações.» (Apocalipse 22, 1-2)
A vinda de Jesus: «Felizes os que purificam as suas vestes para terem o direito de comer o fruto da árvore da vida e de entrar pelas portas da cidade.» (Apocalipse 22, 14)
Final
A Árvore aparece, assim, carregada de simbologia profética.
Por um lado, ela está na raiz do decaímento humano, do homemAdão que a devassa na mira soberba de se assumir como igual a Deus.
Por outro, ela é o fundamento da esperança enquanto simbologia de redenção na árvore feita madeiro da cruz, assim como nos jardins do Getsémani, onde Cristo é sepultado e de onde ressuscita, afirmando a vitória definitiva de Deus sobre o pecado e a morte. Na escrita icónica dos Evangelhos é nesse mesmo jardim povoado de arvoredo, que acolhe o Cristo morto, que desponta uma outra Árvore da Vida da qual frutifica o novo Adão (antítese do velho Adão simbolizado pelas duas tíbias e pela caveira que repousam a seus pés) I primogénito de uma nova geração humana.
Este Adão profético, provém do homem-Cristo, injustamente vexado, acusado, vilipendiado, agredido, ferido e crucificado para que se cumprisse a promessa amorosa da redenção. Para isso Ele aceita humildemente carregar até à cruz, vergado sob o seu peso, a totalidade do pecado passado, presente e futuro da humanidade.
Pecado que resgata mediante a oferenda da Sua própria vida, qual anho humilde que aceita ser fiel cumpridor das promessas do Pai.
O novo Adão frutifica assim numa Árvore da Vida ela própria renascida e enxertada na ressureição e ascensão do Filho ao Pai; do seu lado jorram o sangue e a água, sinais materiais da Eucaristia e do Baptismo, sacramentos nos quais se renova, em permanência, o memorial redentor de Cristo nosso Salvador.
3. A propósito do verdadeiro motor do universo - o AMOR
O iluminismo europeu elegeu a razão como motor único do universo.
Mais, na sua ânsia demiurga, o homem designa a Ciência e a Tecnologia como critério para se chegar à Verdade.
O nosso sistema de promoção e de consagração de saberes, desde o 1.º ciclo de estudos primários ao 3.º ciclo universitário, conducente ao doutoramento, assenta num cânone de conhecimentos codificados, fragmentário, disciplinar, e analítico. Na academia replicamos sistematicamente a ideia de que só é válido aquilo que tem evidência empírica e é explicável por relações de causalidade, apuráveis pela observação de "regularidades". São estas as verdades ditas canónicas que elevamos à categoria de leis, teoremas, axiomas, paradigmas e modelos interpretativos da realidade. Revelação, intuição, emoção, afecto, paixão, são assim elementos perturbadores do bom raciocínio devendo ser liminarmente afastados da postura cientifica pura.
Revivemos e revisitamos, sem descanso, a tentação adâmica de acedermos aos conhecimentos definitivos comendo o fruto proibido da paradisíaca Arvore da Vida. Por esta via, ser-nos-ia dado fruir da condição de deuses.
Mas, ainda que esta fé prometaica nos tenha permitido atingir notáveis, e inegáveis, progressos no plano material, a verdade é que o mundo vive um ambiente crescente de medos e de predação, que divide a humanidade entre vencedores (poucos) e vencidos (a multidão).
Ora, vendo bem, o imperativo auto-Iegitimizador da ciência e da tecnologia, e o nanismo ético e cultural que o acompanha, vem-nos colocando interrogações prementes de cuja resposta depende o nosso destino comum.
Qual o sentido da vida e da morte?
Como discernir entre o bem e o mal numa polis onde aparentemente tudo é permitido e fugaz, onde nada releva como prioridade num pântano relativista que nos tolhe e condiciona?
Existirão algoritmos interpretativos capazes de superar a abordagem dicotómica tradicional entre mente e matéria, entre alma e corpo, entre todo e parte, entre mudança e conservação?
Onde e como encontrar a Verdade que escapa ao universo codificado, e restrito da ciência moderna?
Haverá forma de conciliar métricas da física (filosofia segunda, no sentido aristotélico) com categorias ontológicas e cosmológicas da metafísica (filosofia primeira, aristotélica), sem cair num cientismo estéril?
A física newtoniana apurou que massa atrai massa na proporção directa das massas e na razão indirecta do quadrado da distância. Posteriormente, a teoria da relatividade geral descreve a gravitação em termos análogos ao das três outras forças fundamentais que explicam o nosso universo físico (electromagnética, nuclear forte e nuclear fraca). O problema teórico consiste em reunir numa única teoria unificada de campo, por um lado, a força gravítica, macroscópica, com as demais forças que actuam num plano marcadamente microscópico, e por sua condição sujeito às contingências do princípio da incerteza de Heisenberg.
Mas há dois aspectos que me interessa fazer ressaltar nesta breve incursão pelos caminhos da mecânica quântica e a física da relatividade: (i) o de que a relatividade geral surge como uma teoria relacional na qual o que verdadeiramente importa é a dinâmica das interações entre eventos no espaço-tempo, e (ii) o de que, aceitando-se embora a gravidade como categoria universal e omnipresente, queda por explicar a prima ratio, ou seja, por que razão massa atrai massa.
Teillard de Chardin deu uma explicação genial para o aparentemente inexplicável na pura lógica das ciências da natureza: massa atrai massa por obra do ... AMOR!
Neste entendimento é este o motor primeiro do mundo, nele insito desde o tempo zero que precede o Big Bang e a emergência da primeira partícula elementar, qual impressão digital do seu Criador.
No nosso calendário celebramos este ano outro cinquentenário. O da morte de C. S. Lewis (Clive Staples Lewis), escritor, filósofo, poeta, ensaísta, académico, professor nas prestigiadas Universidades de Oxford e Cambridge. Nos seus livros, e nas suas multifacetadas intervenções públicas, Lewis personifica o cristão empenhado na defesa intransigente dos valores do humanismo personalista.
Um dos seus livros mais interpelantes é aquele em que ele discorre fecundamente sobre os quatro amores (The Four Loves): afecto, amizade, eros, caridade (no sentido da máxima joanina: Deus caritas est).
Sem pretender fazer uma exegese impossível da tetralogia de C.S.Lewis, a vertente que me interessa relevar é que na sua Introdução ao livro em apreço ele começa por estabelecer uma distinção conceptual entre o amor-Dom (Gift-Iove), dádiva gratuita e total entre Deus-Pai e Deus-Filho numa reciprocidade amorosa que oferece o sustentáculo imaterial ao plano de salvação do mundo, e o amor-Necessidade expressão pessoal, aparentemente egoísta, da solidão dos "filhos da pobreza" (Platão) na busca de uma relação portadora de sentido para as suas vidas (tal como Einstein nos explica para o universo físico e de como este fica cativo do evento relacional- teoria da relatividade geral).
No termo de longo e convincente raciocínio C.S. Lewis acaba por negar a sua própria hipótese dicotómica de partida. Ele remata, algo desconcertantemente, com a conclusão de que o amor-Necessidade está perpassado de grandeza na medida em que representa a essência da condição humana: a sua dependência contingencial da relação com o outro (a outra metade de si) e a sua dependência total da vontade do Pai, Senhor da História e da Criação.
O Amor surge, então, como o operador divino na condição humana. O Amor é, por consequência, tão só o corolário de uma "proximidade de Deus" que nos une e nos irmana.
Sem pretender conjunturalizar esta minha intervenção, mas não ignorando as circunstâncias muito difíceis de vida pessoal, familiar e colectiva em que nos vemos hoje mergulhados, concluirei com uma simples pergunta e um arremedo de resposta.
Porque é que, quando escasseiam os recursos e se verifica um empobrecimento geral das condições de vida, somos frequentemente levados a conflitos e a violências psíquicas I físicas, e só menos assiduamente somos conduzidos à colaboração I reinvenção, a uma melhor partilha do escasso?
Onde há menos pão a consequência será a luta beligerante pela acumulação ou a partilha pacífica do essencial? Nas circunstâncias onde encolhe o universo de bens a distribuir, será de esperar a sistemática humilhação do fraco pelo forte ou, pelo contrário, poderemos sonhar com a oportunidade da redenção sábia de que todos os seres humanos nascem?
Não conheço, seguramente por ignorância, os fundamentos científicos que explicam a dualidade extrema de comportamentos humanos quando colocados em situação de depauperação generalizada da comunidade. Mas de uma coisa estou certo: a de que o Amor pode ser uma poderosa categoria analítica susceptível de explicar o comportamento predador ou fraterno dominante. E que só o enraizamento profundo do Amor a Deus Pai e ao próximo (mandamentos primordiais) pode levar a um respeito pleno pelos direitos fundamentais do homem tal como se lê logo a abrir a respectiva Declaração Universal:
"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade." (Artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
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Na sua edição recente de maio-junho, o Le Monde des Réligions contém um curioso artigo intitulado a Jorge Mário Bergoglio, Um Papa Humilde". Nesse artigo se refere que o Papa Francisco viaja para todo o lado com os Evangelhos e que no meio das páginas do livro sagrado ele guarda e venera as cartas de sua avó, uma poesia de Nino Costa que com ela recitava, e o seu testamento na forma de pensamentos. Nessas folhas pessoais, ele encontra uma exortação muito especial de sua avó, escrita meio em italiano, meio em espanhol: "... lembra-te sempre que um simples olhar para Maria aos pés da cruz pode fazer cair uma gota de bálsamo sobre as feridas mais profundas e mais dolorosas".
A Mãe do Amor, Sede da Esperança, Fonte de Sabedoria e Rainha da Paz, a nossa muito amada Maria, Senhora de Fátima, não nos faltará nunca na marcha inelutável para a construção de uma civilização do amor (João Paulo II).
Não fosse o Amor, e a Esperança, pergunto-vos, que outra força invisível nos reuniria hoje a todos, aqui, em Fátima, neste santuário mariano onde todas as feridas encontram bálsamo e cura?