Longos foram os anos de discriminação ao longo dos quais foi impedido de trabalhar, por causa do seu catolicismo, e difícil foi também a luta interior para não recorrer à violência perante a profunda injustiça da privação de direitos civis submetida aos fiéis da Igreja de Roma.
Foi esta dedicação plena à não-violência que tornou Hume, nas palavras proferidas hoje, dia em que faleceu, aos 83 anos, pelo ex-primeiro-ministro Tony Blair, um «verdadeiro visionário que se recusou a acreditar que o futuro tem de ser igual ao passado».
Foi precisamente Blair, que com o seu homólogo irlandês, Bertie Ahern, assinou o Acordo de Sexta-feira Santa, que a 10 de abril de 1998 pôs fim à violência na Irlanda do Norte, a reconhecer a Hume o mérito da pacificação, depois de mais de 3500 mortos: «Foi ele que me convenceu de que a paz era possível».
«O seu contributo para a paz, na Irlanda do Norte, foi de proporções épicas», acrescentou. E o também ex-primeiro-ministro John Major qualificou Hume de «um dos mais entusiastas guerreiros pela paz».
O atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, definiu-o como «um gigante político», que perseguia os seus objetivos «apenas através de meios pacíficos e democráticos».
Hume foi a face pacífica e moderada do catolicismo da Irlanda do Norte. Teve a coragem de se encontrar, em segredo, com o terrorista e pária política Gerry Adams, líder do Sinn Fein, o braço político do IRA, para o convencer a depor as armas. E, depois, a levar à mesma mesa das negociações os líderes dos partidos protestantes, algo que ninguém alguma vez teria pensado que fosse possível.
A ele se deve a primeira verdadeira paz regressada à Irlanda do Norte, atormentada, desde o final dos anos 60, por uma sangrenta guerra civil. Por ter conseguido inscrever a palavra «fim» a trinta anos de violência, foi distinguido, alguns meses após o Acordo de Sexta-feira Santa, a 16 de outubro de 1998, com o prémio Novel, recebido juntamente com o dirigente protestante do partido unionista do Ulster, David Trimble, que colaborou com ele no projeto de paz.
Nascido naquela que os católicos denominam Derry, a 18 de janeiro de 1937, numa família catolicíssima, ainda que tendo um bisavô presbiteriano e protestante, Hume formou-se no seminário de S. Patrício, em Maynooth, na Irlanda, a cerca de 20 km de Dublin, para ser padre. Entre os seus professores esteve o futuro primaz da Irlanda, Tomas O’Flaich.
Depois de abandonar o caminho para a ordenação, diplomou-se e voltou à sua cidade natal para se tornar professor e um dos membros fundadores das cooperativas que ajudavam os católicos a encontrar trabalho.
Ex-ativista pelos direitos humanos, Hume foi, durante vários anos, até 2001, o líder do Partido Social-Democrata e Trabalhista (SDLP), de que tinha sido cofundador, em 1970. O prémio Nobel morreu numa casa de repouso, na sua natal Londonderry, às primeiras horas de hoje, de acordo com a família.
Hume, que se formou na escola dos combates pelos direitos civis de 1968, decidiu encontrar-se secretamente com Gerry Adams a partir do fim dos anos 80. Foi uma opção corajosa e solitária, muito criticada quando se veio a saber, em 1993, que um político respeitável se tinha aproximado de Adams, envolvido na primeira linha com os terroristas do IRA. Um seu adversário unionista acusou Hume de «ter vendido a sua alma ao diabo».
Todavia, da sua casa de Londonderry, o futuro prémio Nobel via Bogside, o bairro católico atravessado pelas bombas e projéteis da guerrilha constante entre os terroristas do IRA e as tropas do exército britânico. Compreendeu que a paz se arriscava a não regressar à região que tanto amava, que se tornou território britânico quando a República da Irlanda foi instituída, em 1922, mas, geograficamente e, para pelo menos metade da sua população, religiosamente e culturalmente, irlandesa para todos os efeitos.
Com um passado de sindicalista, fez-se político, como ele próprio declarou, «para resolver o problema, não para me assegurar um emprego». Formado pela doutrina católica, europeísta até à medula, considerava que o nacionalismo não tinha futuro numa Europa que se preparava para realizar o sonho dos pais fundadores de uma entidade política que haveria de ultrapassar as nações.
Nas suas viagens a Bruxelas e Estrasburgo intui que seria a estrutura da União Europeia a ajudá-lo a encontrar uma via para a saída do conflito. Elaborou, assim, o sonho de uma Irlanda do Norte que se autogovernaria com as duas populações, católica e protestante, que teriam direitos iguais, garantidos pelo Reino Unido e pela República da Irlanda com a Europa em fundo. Um modelo que se poderia ter tornado o caminho para o fim de outros conflitos.
«Uma grande tristeza desceu hoje sobre a minha cidade natal de Derry, ao sabermos da morte de um de nossos maiores filhos, John Hume. Esta tristeza espalha-se por todos os cantos da Irlanda e em todo o mundo onde a simples menção do nome de John Hume evoca admiração, respeito e agradecimento por uma vida dedicada à paz e à justiça social», sublinhou o primaz da Irlanda.
D. Eamon Martin evocou Hume como «um modelo de paz, um gigante de estadista cujo legado de serviço generoso ao bem comum é aclamado internacionalmente, mesmo que talvez ainda se esteja agora a revelar».