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Na vida a tempestade chega sem aviso

Após ter anunciado aos discípulos e às multidões algumas parábolas a partir de uma barca encostada à praia, Jesus decide passar à outra margem do mar da Galileia (Marcos 4, 35-41): trata-se de uma “saída” da terra santa de Israel, para ir em direção a uma terra habitada por pagãos. Porquê esta decisão tão audaz? Porque Jesus, apesar de se sentir enviado primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel. quer anunciar a misericórdia de Deus também aos gentios, quer combater Satanás e tirar-lhe terreno também naquela terra estrangeira e não santa. Esta é a razão que move Jesus. Jonas, chamado por Deus a ir a Nínive, cidade símbolo dos pagãos, foge, faz um caminho em direção oposta; Jesus, pelo contrário, enviado por Deus, vai ao encontro dos pagãos.

Os discípulos, portanto, iniciam a travessia do lago, «levando consigo Jesus» (expressão única, porque habitualmente é Jesus que leva consigo os seus discípulos: Ele está exausto devido à longa jornada de pregação, e na barca procura uma enxerga na qual se possa distender para repousar. Mas à vontade de Jesus opõe-se o mar, que é o lugar onde as forças do mal se desencadeiam em tempestade. Não se esqueça que para os judeus o mar era o grande inimigo, vencido pelo Senhor quando fez sair o seu povo do Egito; era a morada de Leviatã, o monstro marinho; era o grande abismo que, quando desencadeava a sua força, amedrontava os navegantes. E eis que o poder do demónio se manifesta numa tempestade de vento, que lança as ondas contra a barca e tenta afundá-la. É noite, é a hora das trevas, e o medo sacode aqueles discípulos, que deixaram de conseguir governar a barca. O naufrágio parece inevitável, e todavia Jesus, à popa, dorme.



Discípulos sem fé, sem adesão a Jesus: seguem-no, escutam-no, mas não colocam nele plena confiança



Os discípulos, então, tomados pela angústia, ao ver Jesus adormecido, impacientam-se. Decidem por isso despertá-lo, e com modos decerto não reverentes, gritam: «;estre, não te importa que estejamos perdidos?». Esta maneira de se exprimirem é já eloquente: chamam-no “mestre” e com palavras bruscas contestam a sua inércia, o seu sono. Palavras que na versão de Mateus se tornam uma oração - «Senhor, salva-nos, estamos perdidos!» - e na de Lucas um chamamento - «Mestre, mestre, estamos perdidos!». Marcos recorda melhor as relações simples e diretas, até pouco gentis, dos discípulos para com Jesus…

Perante esta falta de fé, Jesus repreende o vento e exorciza o mar. «dizendo-lhe: “Cala-te, acalma-te”. E subitamente o vento cessou e houve grande bonança». Este milagre realizado por Jesus – não escapa a ninguém – tem sobretudo um grande alcance simbólico, porque cada um de nós, na sua vida, conhece horas de tempestade. Também a Igreja, a comunidade dos discípulos, por vezes encontra-se em situações de contradição tais, que se sente imersa em águas agitadas, em grandes vagas, num vórtice que ameaça a sua existência. Nestas situações, em particular quando duram muito tempo, tem-se a impressão que a invisibilidade de Deus é, na realidade, um seu dormir, um não ver, um não sentir o grito e os gemidos de quem se lamenta. Sim, a pouca fé faz os crentes gritar: «Deus, onde estás? Porque dormes? Porque não intervéns?» (cf. Salmos 35, 44, 59, etc.).

Devemos confessá-lo: ainda que acreditemos ter uma fé amadurecida, de sermos cristãos adultos, na provação interrogamos Deus sobre a sua presença, chegamos inclusive a contestá-lo e por vezes a duvidar da sua capacidade de ser um Salvador. O sofrimento, a angústia, o medo, a ameaça à nossa existência pessoal ou comunitária tornam-nos semelhantes aos discípulos na barca da tempestade. Por isso Jesus tem de os repreender com palavras duras. Não só lhes pergunta «porque estais tão amedrontados?», como acrescenta: «Ainda não tendes fé?». Discípulos sem fé, sem adesão a Jesus: seguem-no, escutam-no, mas não colocam nele plena confiança.



Jonas e Jesus são dois missionários de misericórdia, e ambos pregam a preço muito caro: descendo ao vórtice das águas e enfrentando a tempestade, porque só atravessando-a se vence o mal



E eis que diante destas palavras tão críticas de Jesus, mas também diante do prodígio que viram com os seus olhos, aflora nos discípulos uma pergunta: «Quem é verdadeiramente este rabi, este mestre, que até o vento e o mar a Ele se submetem?». Contudo, também deste acontecimento não saberão extrair uma lição, porque, quando chegar para Jesus e para eles a grande tempestade, a hora da sua paixão e morte, desencorajar-se-ão por causa da sua falta de fé. De facto, esta provação da tempestade no mar é anúncio da grande provação que os aguarda em Jerusalém, onde todos o abandonarão e fugirão. Depois, perante Jesus morto e sepultado, verificarão um grande malogro do mestre e do seu grupo. E só o túmulo vazio e o contemplar Jesus vivo, ressurgido da morte, gerarão neles uma fé sólida, que os conduzirá a confessar Jesus enquanto vencedor sobre o mal e sobre a morte. Então, enquanto testemunhas do Ressuscitado, tornar-se-ão também capazes de enfrentar, por sua vez, a tempestade que se abaterá sobre eles: a perseguição por causa do nome de Jesus e da fé nele.

Quando Marcos escrevia o seu Evangelho e o entregava à Igreja de Roma, a pequena comunidade cristã na capital do Império estava na tempestade e reinava nela um grande medo, ao ponto de impedir àqueles cristãos a missão junto dos pagãos. Assim Marcos convida-os a não temer a “saída” missionária, convida-os a conhecer as provações que os esperam como necessárias; provações e perseguições nas quais Jesus, o Vivo, não dorme, mas está no meio deles. A tempestade sobre o mar da Galileia é uma metáfora da luta contra as potências do mal, luta que Jesus Cristo venceu. Jesus aparece então como Jonas, mas um Jonas ao contrário: não relutante, mas missionário rumo aos pagãos, em obediência a Deus. Em todo o caso, Jonas e Jesus são dois missionários de misericórdia, e ambos pregam a preço muito caro: descendo ao vórtice das águas e enfrentando a tempestade, porque só atravessando-a se vence o mal. É por isso que Jesus dirá que à sua geração será dado apenas o sinal de Jonas, ou seja, a parábola da misericórdia anunciada ao preço da descida às águas da morte, ao preço de ir até ao fundo.

Quanto é cristã a frase: “Naufragium feci, bene navigavi”. Naufraguei, mas naveguei bem, porque aportei ao reino de Deus.


 

Enzo Bianchi
In Il blog di Enzo Bianchi
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Lesia Povkh/Bigstock.com
Publicado em 08.10.2023

 

 
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