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Natal sem magia

O termo «magia» propriamente refere-se ao uso de meios não naturais de ação, prática e poética. É mágico o que não segue isso que são os princípios naturais de movimento. Assim, não é mágico que o sol surja no fim de todas as noites e, com ele, o dia; não é mágica a beleza das flores que são belas; não é mágica a bondade das pessoas que são boas. Tudo isto é bom e belo, mas não é mágico, porque nada disto é desconforme aos princípios de movimento do universo. O que tudo isto é é maravilhoso. Todavia, não é mágico.

Habitualmente, parece confundir-se a maravilha do bom e do belo comuns, sim, comuns, com algo de mágico. Mas a maravilha não é mágica, simplesmente manifesta o sentido estético profundo e capaz de envolver totalmente a inteligência de cada ser humano num ato de intuição do que é perfeito. Sim, perfeito, ainda que limitado. Mas a única perfeição ilimitada é a divina. Não há, assim, maravilha para ateus e agnósticos.

Não admira, deste modo, que o termo magia esteja tão difundido num mundo que é superficialmente dominado por formas também superficiais de ateísmo. O agnóstico reserva-se sempre para apostar no que ganhar, sempre perdendo a oportunidade.

A mentira da magia ofusca a verdade da maravilha: o super-homem, do inteligente Nietzsche ou do não-tão-inteligente americano frustrado não resolve os problemas reais do mundo, não só porque não existe, mas, sobretudo, porque é incapaz de magicamente substituir a impotência de quem o criou pelo poder real de quem não sonha com substitutos, antes se põe a caminho, se põe à obra, age, faz, poetiza o bem no e do mundo.

Não há magia no mundo, há movimento real; há potência; há transformação; há movimento segundo princípios; há princípios ainda ignotos que também movimentam o mundo, sem magia. Sem magia, com e por meio de, precisamente, meios.



A promessa mágica talvez seja a forma mais violenta em termos éticos, políticos, e mesmo antropológicos gerais, pois põe as pessoas a viver num vazio total de realidade, que não só lhes rouba o contacto com a real maravilha do que é, mas lhes rouba a possibilidade de poderem reconstruir o mundo real e reconstruir-se no mundo real



A magia é a negação da realidade dos meios, das mediações reais. Onde não há meios, aquela não os cria, limita-se a postulá-los imageticamente. Logo se frustra, pois concretiza-se em mera imagem, esta, ainda, meio, só que de irrealidade. A magia é um mundo simplesmente imaginado, alienado. Não se trata de forma de invenção de novo real, mas de substituição do real por um nada de realidade.

Então, num mundo que se aliena em magia, surpreende que, cada vez mais, se fale de modo vão sobre soluções, nada de real sendo solucionado? Que é da abolição mágica da fome?; e da abolição mágica da guerra?; e da morte mágica da inveja e do ódio?

Que sucede quando se acorda – se é que se acorda – do sonho mágico?

Por que não convocar as pessoas para a maravilha do movimento do mundo que cria bondade e beleza: pão, paz, numa poesia maravilhosa sem lugar para a violência?

A promessa mágica talvez seja a forma mais violenta em termos éticos, políticos, e mesmo antropológicos gerais, pois põe as pessoas a viver num vazio total de realidade, que não só lhes rouba o contacto com a real maravilha do que é, mas lhes rouba a possibilidade, ao retirar o contacto com as mediações construtoras da realidade, de poderem, sequer, reconstruir o mundo real e reconstruir-se no mundo real, acordadas que fiquem após o pesadelo fantástico do sonho mágico. O saldo da magia é o nada de realidade.

E não, não: a alienação do ser humano na magia como fuga ao sofrimento não é algo de bom, apenas mais uma forma de alienação, de morte do que há de mais profundo na humanidade, a sua capacidade autónoma de autopoesia.

É para a maravilha da beleza que se mostra no mundo que a atenção das pessoas deve ser chamada. Maior ou menor – e é sempre imensa, é preciso é que se veja e que não se impeça que se veja – a beleza presente no real mundo é isso que pode encher de alegria o ser humano. Nada mais o pode. Nada mais vale a pena.

Assim sendo, perante a maravilha do Deus – deus mítico para os não-crentes, mas deus poético, ainda assim – que se faz carne de forma não-mágica, respeitando os algoritmos da cósmica combinatória genética, sendo gerado em humana carne, parido por humana carne, aleitado por humano seio, invoque-se a beleza dos meios do amor divino e humano. Admire-se o esplendor real da santa maravilha da carne humana de Deus. Sem magia.

O Natal não é mágico: é maravilhoso.

Todos, mesmo o dos magos.


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Imagem: D.R.
Publicado em 11.12.2019 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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