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No isolamento, dar vida a gestos de comunhão

Há alguns dias, aguardando por passar através dos controlos no aeroporto de Telavive, detive-me a observar os movimentos de um rapaz que estava na fila antes de mim. De cada vez que dávamos alguns passos, colocava sempre uma mala a um metro e meio à frente e outra a um metro e meio atrás de si, de maneira que ninguém se pudesse aproximar dele. Teria as suas boas razões, mas tratou-se de um poderoso símbolo daquilo que o vírus significa para milhões de pessoas: isolamento, manter as distâncias. A própria presença dos outros pode constituir uma ameaça, e cada um de nós é-o para os outros.

O isolamento pode ser mais terrível do que a morte. Todos temos de morrer, e para muitos a morte chega como um alívio esperado. Mas o isolamento mina a nossa própria humanidade: as avós estão isolados dos seus netos, os namorados estão separados um do outro. A nossa vida é feita de contactos recíprocos: dos mínimos aos mais íntimos. Num romance de Jonathan Safran Soer, há um personagem que diz: «Tocá-lo era muito importante para mim. Vivia para isso. Não saberei explicar porquê. Contactos escassos, insignificantes. Os meus dedos no seu ombro. Asa nossas pernas que se tocavam uma à outra no autocarro». Ora, ameaçado pelo coronavírus, um contacto vital pode tornar-se mortal.

 

A solidão de Jesus

Na noite anterior ao meu regresso, fui ao Santo Sepulcro em Jerusalém, e visitei o túmulo onde se considera que Jesus foi deposto durante três dias. No coração da fé cristã há um homem morto em total isolamento. Foi erguido sobre a cruz e, acima da multidão, sem qualquer contacto, transformado em nu objeto. Parece até que se sentiu separado do Pai, e as suas últimas palavras, segundo os Evangelhos de Marcos e de Mateus, foram: «Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?». Naquele momento, Ele não só abraçou as nossas mortes. Ele fez totalmente sua a solidão que todos nós, por vezes, suportamos, e que milhões de pessoas estão hoje a viver.

Na noite antes de morrer, esse isolamento já era palpável. Tinha juntado à sua volta os amigos mais estreitos para uma última ceia. Um deles já o tinha vendido àqueles que queriam a sua cabeça; Pedro, a sua rocha, estava para o negar tê-lo conhecido, e maior parte dos outros estava para lhe voltar as costas. Naquele momento tão atroz, Ele fez algo de absolutamente desconcertante: tomou o pão e o vinho, e disse: «Este é o meu corpo, e este é o meu sangue, derramado por vós».

Quando a comunidade se estilhaçou, e cada um se preparava para enfrentar o futuro a sós, Jesus fez a promessa de uma nova comunhão, que seria mais forte do que a traição e a cobardia, e que nada poderia destruir, nem sequer a morte.

Quando as igrejas estão fechadas e o culto público está temporariamente suspenso, aquela promessa resiste ainda, e o dom não deixa de ser oferecido.

 

Os gestos da comunhão

E portanto, sim, este horrível vírus pode isolar-nos uns dos outros fisicamente, e esta e uma privação profunda. Mas os cristãos acreditam que toda a nossa solidão é abraçada numa comunhão que ultrapassa qualquer barreira. O Senhor ressuscitado vem através das portas atrás das quais os discípulos se tinham fechado em autoisolamento, e liberta-os do medo e da solidão.

Mesmo que não possamos participar na eucaristia, podemos ainda assim dar vida aos símbolos da comunhão. Na Irlanda do Norte há uma hospedaria que se ofereceu para distribuir refeições gratuitas às pessoas bloqueadas dentro das suas próprias casas. Em Itália as pessoas vão às varandas e cantam umas para as outras. A música chega às salas abraçando cada um na sua solidão.

A música é certamente mais capaz do que as palavras de exprimir uma esperança. Há uma composição escrita para o 11 de setembro, “Between worlds”, de Tansy Davies, que foi executada pela primeira vez em 2015. Houve quem tivesse ficado perturbado pelo facto de se poder compor uma obra sobre um acontecimento tão terrível, mas talvez seja a única maneira de enfrentar a sua crueldade. Nokolas Drake, o autor do libreto, disse que «colocar a força transformadora da música no coração do drama, a nosso ver, permite olhar na cara a tragédia ocorrida a 11 de setembro, e, além disso, vislumbrar naquela obscuridade uma qualquer luz. Parece que a música contribuiu até para ajudar as pessoas, naquele dia. Um agente da polícia entoava hinos quando se cruzava com quem descia as escadas, para lhes dar coragem. Alguns familiares, ao telefone com os seus amados, sem mais palavras para dizer, cantavam».

Se agora milhões de nós têm de sofrer o isolamento, que gestos podemos realizar para nos colocarmos em contacto com aqueles que não podemos contactar? Podemos fazer as compras para quem não o pode fazer sozinho e deixá-las à porta, telefonar-lhes ou enviar uma mensagem. Há pequenos gestos que podem exprimir uma pertença profunda.

Cada eucaristia recorda-nos aquilo que Jesus fez diante da morte, opondo-se á sua ameaça de isolamento mais extremo. Nunca estive tão consciente disso como quanto celebrei missa na Síria, a menos de dez km da fente, com os tiros de canhão que se ouviam a pouca distância. A ameaça da violência estava em todo o lado, e, todavia, no nosso cantar e no nosso repetir os gestos do dom de si que nada poderá alguma vez destruir, exprimimos a nossa esperança.

Mesmo quando não posso estar junto da comunidade em oração e unir-me a ela, Deus continua presente, como escreve Santo Agostinho, «no profundo da minha interioridade». Por muito que me sinta só, não o estou, porque no centro do meu ser há um Outro.


 

Fr. Timothy Radcliffe, O.P.
In Il Regno
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.03.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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