Provoca arrepios escutar a voz de John Lennon cantar uma música nunca antes escutada. E sim, faz efeito saber que aqueles que escutamos são os “Fab Four”, com os seus coros e instrumentos inconfundíveis. Porque “Now and then”, que desde 2 de novembro se tornou num acontecimento musical planetário que já se tornou história, será também uma canção “Frankenstein”, como alguém a definiu, mas é uma canção dos Beatles, porque soa como uma canção dos Beatles, apesar de John Lennon e George Harrison já não estarem entre nós, o primeiro assassinado em 1980, o outro falecido de cancro em 2001.
E desta vez é realmente a última, assegura Paul, principal artífice de algo que nunca tinha acontecido antes. Porque é verdade que na metade dos anos 90, por ocasião da saída dos álbuns “Anthology”, tinham sido publicados dois inéditos escritos por Lennon, “Free as a bird” e “Real love”, extraídos de cassetes para demonstração (“demo”) enviadas a Harrison por Yoko Ono, mas nessa altura os três ex-Beatles trabalharam em conjunto. Nesse tempo também experimentaram gravar “Now and then”, mas a tecnologia dessa altura não lhes permitiu isolar, na “demo” de 1977, a voz de John do piano, e os três puseram o projeto de lado.
Hoje foi possível graças a um programa que Peter Jackson já tinha usado para o documentário “Get back”, em 2021. Portanto, nada de falsidade, como foi insinuado: a voz que se escuta não foi recriada artificialmente, mas é a de Lennon (assim como a guitarra de Harrison, extraída de gravações de 1995). E se hoje temos a oportunidade de a poder voltar a escutar num inédito, devemo-lo a Paul McCartney, que nunca quis abandonar esta faixa, e a Ringo Starr. Ambos regressaram ao estúdio para gravar de novo os instrumentos – com o acrescento de uma orquestra de arcos, cujos músicos não sabiam tocar para uma canção dos Beatles – e inserir os coros, nos quais não é difícil intuir vestígios de “Here, there and everywhere”, “Eleanor rigby” e “Because”. Tudo composto por Giles Martin, filho de George, histórico produtor dos “Fab four”.
Nenhum tinha conseguido compreender o vínculo de Paul àquela música, sobretudo àquelas palavras. Mas agora sabemos porque ficou tão impressionado ao ouvi-la cantar pela primeira vez pelo amigo John.
Carl Perkins foi chamado por McCartney, em 1981, a colaborar na realização do álbum “Tug of war”. No fim das gravações, para agradecer ao amigo por aquela oportunidade, Perkins escreve uma canção, “My old friend”. Deu-a a escutar a Paul, que ficou em lágrimas. Perkins não entendeu o motivo da comoção. Foi Linda, a mulher de Paul, quem lhe explicou que o marido tinha ficado tocado por aquela canção que falava de amizade, e em particular pelo verso «every now and then». E confidenciou-lhe um segredo conhecido até então apenas por ela. Ele disse-lhe que a última vez que os dois amigos se tinham saudado, à entrada do Dakota Building, em Nova Iorque, John tinha-lhe dado uma pancadinha nas costas a Paul e disse-lhe: «Think about me every now and then, old friend» (pensa em mim de vez em quando, velho amigo). «Paul acreditava que aquela canção me foi inspirada por John, estava convencido disso», disse Perkins.
Conseguir concluir “Now and then” foi, por isso, uma preocupação de Paul, que no final coroou o seu sonho de fazer dela uma canção dos Beatles, uma espécie de reconhecimento nostálgico da sua amizade, oferecendo-nos uma pequena e última pérola. Uma canção substancialmente incompleta, percebe-se, ainda que os arranjos a tornem, em todo o caso, completa. Uma balada melancólica, íntima, típica daquele período de Lennon, que tinha decidido fazer uma pausa nos concertos e gravações em estúdio para dedicar-se ao filho Sean.
«Sei que é verdade / É tudo graças a ti / E se o consigo / É tudo graças a ti», canta John, a cuja voz se une a de Paul no refrão, dizendo em conjunto «de vez em quando sinto a tua falta». E é aqui que se compreende porque é que McCartney se ligou tanto a esta canção: percebia nela o laço que durante anos os tinha unido; um laço nunca totalmente interrompido, apesar das incompreensões que o tinham deteriorado.
No breve documentário “Now and then – The last Beatles song”, que precedeu a publicação da canção – cujo “single” tem significativamente como lado B a primeira canção da banda, “Love me do”, propositadamente remisturada –, é precisamente Paul que responde à única verdadeira pergunta. «Digamos que tive a possibilidade de perguntar ao John: “Ei, John, gostavas que acabássemos esta tua última canção?”. Digo-te, sei que a resposta teria sido “sim!”. Ele teria gostado muito». E nós só podemos estar-lhe agradecidos.