«Figura de relevo da cultura europeia do século XIX, John Henry Newman é objeto de novo e crescente interesse, despertado pela sua beatificação em 2010 por Bento XVI e pela sua canonização em 2019 pelo Papa Francisco, assim como pela actualidade do seu pensamento nos campos filosófico, teológico, literário e educativo.»
É em torno à obra de«um homem profundamente fascinado pelo Mistério cristão» que as Edições Tenacitas lançaram na semana passada a obra “O coração do mundo”, antologia de escritos de São John Henry Newman organizada por Onorato Grassi, professor da Universidade Católica de Milão
«Esta recolha de textos, retirados das suas obras mais importantes, pretende delinear, de um modo simples e a todos acessível, um perfil do pensamento e da figura de Newman. para que um número cada vez maior de leitores possa abordar os escritos deste grande autor», assinala a nota de apresentação do livro, do qual apresentamos um excerto.
Moralidade no conhecer
John Henry Newman
In “O coração do mundo”
É óbvio que ser-se sério na procura da verdade é um requisito indispensável para a encontrar. Na verdade, não seria necessário sublinhar uma proposição tão evidente, não fosse a estranha conduta dos antigos filósofos nas suas teorias a respeito da natureza e do homem. Parece que quase só um ou dois deles eram sérios e sinceros nas suas investigações e ensino. A maior parte considerava as especulações sobre temas filosóficos mais à luz de um divertimento do que de uma ocupação séria – como um exercício de criatividade ou uma entrega à fantasia – para exibir as suas capacidades, para angariar seguidores ou em prol do ganho. De facto, parece incrível haver homens, realmente sérios na sua procura da verdade, que tenham começado por teorizar ou que tenham imaginado que um sistema – que tinham a consciência de ter inventado quase sem dados – quando aplicado à realidade efectiva das coisas alguma vez pudesse harmonizar-se com os fenómenos inumeráveis e diversificados do mundo. E, no entanto, apesar de esta posição, quando afirmada, parecer tão óbvia: que, ao formular uma teoria séria sobre a natureza, temos de começar com a investigação, excluindo a especulação fantasiosa ou a deferência à autoridade humana, essa posição não foi geralmente reconhecida ou aceite até um filósofo cristão a impor à atenção do mundo. E ele era certamente sustentado pela linguagem uniforme de toda a Bíblia, que nos diz que a verdade é demasiado sagrada e religiosa para ser sacrificada à pura gratificação da fantasia, ou ao divertimento da mente, ou ao espírito de partido, ou aos preconceitos da educação, ou ao apego, apesar de louvável, às opiniões dos mestres humanos, ou a algum dos outros sentimentos com que os antigos filósofos fizeram os possíveis para os influenciar nas suas discussões alegadamente graves e sérias.
Insisto: a modéstia, a paciência e a prudência são disposições da mente quase tão necessárias à investigação filosófica como a seriedade e a honestidade, apesar de não tão obviamente necessárias. A imprudência nas asserções, a pressa em tirar conclusões, a confiança resoluta na nossa própria perspicácia e capacidades de raciocínio são incompatíveis com a homenagem que a natureza exige àqueles que gostariam de conhecer as suas maravilhas ocultas. Ela recusa-se a revelar os seus mistérios àqueles que se aproximam com outro espírito que não o humilde e reverente de aprendizes e discípulos. E assim, insistindo, aquele amor ao paradoxo que gostaria de lhe impor uma linguagem diferente do que ela realmente fala é tão antifilosófico como anticristão. Mesmo a entrega à imaginação, apesar de ser um defeito mais ilusório, é igualmente hostil ao espírito da verdadeira filosofia, e tem desencaminhado os mais nobres entre os antigos pensadores, que pareciam pensar que não podiam enganar-se ao seguirem os impulsos naturais e as sugestões das suas mentes, sem a consciência de qualquer motivo baixo e indigno a influenciá-los nas suas especulações.
Também aqui se pode mencionar o mal que se fez aos interesses da ciência com um excessivo apego ao sistema. O amor à ordem e à regularidade e aquela perceção da beleza que é extremamente aguda nas mentes altamente dotadas muitas vezes desencaminharam os homens das suas investigações científicas. Ao verem apenas partes isoladas do sistema da natureza, têm sido levados, sem dados, a arrumar, suprir e completar. Não têm tido paciência para conhecer senão parcialmente e para esperar futuras descobertas; inferiram muito de escassas premissas e fizeram conjeturas quando não podiam provar. É através de uma disciplina aborrecida que a mente é ensinada a ultrapassar aqueles princípios básicos que a cerceiam na investigação filosófica, e a moderar aquelas faculdades e sentimentos mais nobres que, quando em excesso, são prejudiciais. Ser-se desapaixonado e prudente, ser leal nas discussões, dar a cada fenómeno que a natureza apresenta sucessivamente o peso devido, admitir francamente os que militam contra a nossa teoria, estar disposto à ignorância por um certo tempo, submeter-se às dificuldades e avançar com paciência e docilidade, esperar mais uma luz, é próprio de um temperamento (difícil ou não nestes dias) pouco conhecido no mundo pagão; e, no entanto, é o único temperamento com o qual podemos esperar tornarmo-nos intérpretes da natureza e é precisamente esse temperamento que o Cristianismo indica como a perfeição do nosso carácter moral.