É recorrente a questão «onde estava Deus em Auschwitz?». Do ponto de vista meramente lógico, esta questão faz tanto sentido quanto estas outras, aleatórias: «onde estava Deus em Lisboa?», «onde estava Deus em Marte?», «onde estava Deus no meu exame de matemática?», «onde estava Deus no meu exame de matemática para o qual não estudei?», «onde estava Deus em todos os atos em que por minha responsabilidade falhei?».
Se, de um ponto de vista lógico, todas estas questões se equivalem, já de um ponto de vista não apenas lógico, mas de relação entre a simples lógica discursiva e a realidade – a comezinha realidade em que sou, em que ajo ou devo agir –, estas frases interrogativas são muito diferentes. Sem pôr em causa sequer o sentido genérico comum a todas, que é imbecil, porque isso de «Deus» não é uma coisa que possa estar num sítio qualquer, dado que é metafísico, logo, transcende a possibilidade de localização mundana, percebe-se facilmente, ao contrastarmos a famosa primeira questão elencada com a última, que talvez o problema não seja a literal «ecolocalização» de Deus, mas a minha localização como agente no ecossistema que é o mundo.
Antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, Deus não estava em Auschwitz como não estava em Lisboa ou na Patagónia. A questão posta como habitualmente é, ou releva de um sentido panteísta ou releva de um sentido metafórico próprio de quem transfere de si mesmo, para entidades imaginárias quaisquer, responsabilidades que quer alijar.
Concretize-se: antes de tal guerra, logo após a subida formalmente democrática de Hitler ao poder, o não menos formalmente democrata – e certamente muito mais materialmente democrata – Winston Churchill começou a denunciar publicamente a maldade de tal homem e do sistema depravado que representava. Note-se que Churchill não invocou em vão o serviço escravo de Deus em seu lugar nem acusou Deus de coisa alguma, mas ele próprio fez o serviço.
Não estaria Deus nas palavras e ações do velho político britânico, para usar a mesma estulta forma de perguntar? É bem possível que estivesse, em verbo, que, como se sabe, sopra como e onde quer, sobretudo onde não há cobardes preguiçosos. Poucos foram os que ouviram Churchill (seria, aliás interessante fazer um estudo sobre as posições – de depois da guerra – acerca da presença de Deus durante a guerra dos que não escutaram Churchill antes da guerra).
Não estaria Deus em todas as boas ações que, aos milhões, foram realizadas em Auschwitz e em todas as centenas de campos semelhantes existentes não apenas na Europa, mas um pouco por todo o mundo em guerra?
Não esteve Deus presente na ação de Schindler, na Polónia, não muito longe de Auschwitz? Não esteve Deus presente na ação de Sousa Mendes, em Bordéus? E em Lisboa, quer na chancelaria quer em todo o seu espaço geográfico e político; e no Estoril? Será que Deus não estava em cada gesto que cada português teve de bondade para com os fugidos ao terror nazi? Não?
Será que Deus não esteve presente nas ações dos veneráveis Judeus que se revoltaram no gueto de Varsóvia, se organizaram e deram batalha aos SS, tendo sido vencidos, mas não tendo morrido com escravos? Deus aqui não esteve?
Será que Deus não esteve presente, em Treblinka – o pior dos campos de extermínio, em que a maldade de Hitler, de facto, triunfou, pois, em Treblinka, o pérfido trabalho de matança humana foi cumprido até ao último a matar – na força, na coragem, na inteligência, na resistência e resiliência dos que também se organizaram, deram batalha aos guardas e fugiram? Não?
Quanto a Treblinka, o testemunho claríssimo de Chil Rajchman mostra bem como, no inferno mais abjeto criado pela maldade e pela humana estupidez que a suporta, foi possível – de forma que raia o milagre, mas é, de facto, humano milagre de amor ao bem – vencer a besta, ainda que efemeramente. Mas realmente. Aí não estava Deus?
Como é evidente, a questão a proclamar não é a cínica e imbecil «onde estava Deus?», mas «onde estava o Homem?».
Ali, onde o ser humano agiu no sentido do bem, Deus esteve sempre; ali, onde a besta humana imperava sobre o inocente e o escravo, Deus também estava presente quer no inocente e no escravo, quer em todos os que lutaram contra a escravidão.
Poder-se-ia ser tentado a afirmar que «onde Deus não está é “nos” preguiçosos, “nos” cobardes, “nos” cínicos que não agem quando devem e depois se queixam de Deus».
Todavia, nem tal é certo, pois, mesmo nesses, soberana ironia, Deus também está. A diferença reside em que Deus está e sabe; eles não sabem e não querem saber. E esta última situação é o inferno, e não é em metáfora.
Perguntemo-nos sempre: meu Deus (pode ser um deus qualquer), onde estou eu para o bem? O bem apenas pode começar aqui. E aqui começa sempre.