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O livro, pelo cardeal Tolentino: É «incalculável o património humano, cultural e espiritual» que representa

Estamos hoje às portas, diz-se de vários lados, do fim da era do livro. E não porque os livros, no arco histórico da nossa vida, tenham cessado de existir de um momento para o outro, ou porque isso está prestes a acontecer: esperamos e ardentemente desejamos que continuem a ser escritos el idos, a ser publicados, difundidos e conservados ainda por longo tempo. O que, no entanto, está a acontecer é que, tanto como artefactos quanto como transmissores de uma determinada concetualização moral da vida, os livros deixaram de representar, como sustentava George Steiner já nos anos sessenta do século passado, o principal ponto focal de energia da nossa civilização. Nesta função, o livro foi substituído pelo ecrã.

Cada um de nós, com efeito, passa hoje mais tempo à frente de um ecrã do que de um livro. E são muitos géneros os ecrãs que povoam massivamente o nosso quotidiano e o plasmam, vindo assim a ocupar o lugar que, durante séculos, estava reservado à página e ao texto, manuscrito ou impresso. Aquilo a que assistimos na consumação desta reviravolta é que o próprio texto alfabético está a tornar-se nada mais que uma modalidade entre muitas de elaboração das milhões de mensagens que são visualizadas nos ecrãs. O livro, e aquilo que representa, encontra-se relegado para um papel cada vez mais minoritário. Na autorrepresentação que o mundo contemporâneo faz de si, o livro já não é, por exemplo, «a grande metáfora», como era no século XII, quando o teólogo e místico Hugo de S. Vítor sustentava que “omnis mundi creatura quasi liber”, para dizer que cada criatura deste mundo é como um livro e pode ser explicada por analogia a partir dele; ou como o era, ainda, no final do século XIX, quando Mallarmé imaginava o livro como uma estrutura omnicompreensiva, uma espécie de coágulo total das escrituras decifráveis e indecifráveis do ser humano e do universo.



Nesta vaga de passagem de civilização, devemos interrogar-nos sobre aquilo que, como sociedade, podemos fazer para valorizar este património e assegurar que o livro continue a inspirar-nos na construção da nossa humanidade. Os livros não nos tornam apenas leitores, tornam-nos também cidadãos



É verdade que, como dizem alguns, devemos falar de transformação, mais do que de crepúsculo, do livro, a partir do momento em que aquela em curso é simplesmente uma modificação do suporte do livro, e não do livro propriamente dito. A atual forma em papel é uma etapa de uma história mais longa, iniciada com os textos incisos sobre a pedra, em tabuinhas de argila, e continuada depois com os rolos. Uma história que continuará a fazer o seu caminho. Neste sentido, Umberto Eco afirmava, confiante, que o livro reentra naquela tecnologia eterna a que pertencem a roda, a faca, a colher, o martelo, a panela ou a bicicleta. Por muito que os designers invistam na transformação deste ou daquele detalhe, será sempre possível reconhecer que aquela é uma faca ou aquela é uma colher. Uma bicicleta terá sempre duas rodas e um quadro. Analogamente, com todas as variações que poderão ser introduzidas, aquilo que teremos entre as mãos será sempre um livro.

Não podemos, todavia, esquecer que a civilização que inventou o livro inventou também as condições necessárias para a sua leitura, e que estas plasmaram-nos antropologicamente, constituindo um património cultural que devemos preservar. Porque quem inventou o livro inventou o silêncio da leitura; inventou aquela forma íntima de temporalidade que torna o encontro com o livro indissociável do encontro connosco próprios; inventou a atenção, a aventura do conhecimento e a curiosidade; inventou um habitat social em que a atividade intelectual era admitida e, não o esqueçamos, este habitat libertou o ser humano, revelando-lhe a sua dignidade; inventou o direito universal à alfabetização e multiplicou as comunidades de leitores; inventou o indivíduo e a vida privada; inventou a confiança na consistência da linguagem e as bibliotecas; inventou os salões literários, os cafés e as praças como lugares de debate; inventou os sistemas críticos e hermenêuticos que garantem não só a legibilidade dos livros, mas a compreensão dos mundos possíveis; inventou as escolas monásticas e a ideia moderna de universidade; inventou o humanismo e a liberdade de expressão, que é sempre inseparável da liberdade de ser. O livro acompanhou o nascimento e a expansão das línguas modernas do Ocidente, e assistiu ao desenvolvimento das suas possibilidades expressivas, cognitivas e de imaginação. Quem inventou o livro inventou uma certa forma de produzir história e inventou também a figura do leitor como ainda somos. Por isso é incalculável o património humano, cultural e espiritual representado do livro. O que o livro coloca em jogo é muito mais que o livro.



Foram os livros que fizeram a Europa. De Homero a Virgílio, a Catão, a Petrarca. Dos tratados de Aristóteles às cartas de Paulo. Das comédias de Terêncio às “Confissões” de Agostinho. Das fantasias de Lucrécio à “Summa” de S. Tomás. Dos trovadores medievais a Dante ou a Camões. Dos panfletos de Voltaire a Marx. De Hegel a Freud. De Dostoiévski a Joyce. De Simone Weil a Maria Zambrano



Não podemos desfazer-nos dele como se fosse um resíduo arcaico destinado a ser desativado. Escreveu Mario Vargas Llosa: «Quando penso no prazer imenso que me ofereceram as bibliotecas e como foi belo trabalhar nelas, estimulado por aqueles milhares de livros nos quais estão depositados o conhecimento e a fantasia literária de tantos séculos, penso com tristeza que talvez a minha seja a última geração a fazer uma experiência semelhante, se, como não é impossível pensar desde agora, as novas gerações de escritores trabalharem rodeados de ecrãs em lugar de estantes e a matéria do livro não for o papel, mas os cristais líquidos dos monitores». Nesta vaga de passagem de civilização, devemos interrogar-nos sobre aquilo que, como sociedade, podemos fazer para valorizar este património e assegurar que o livro continue a inspirar-nos na construção da nossa humanidade. Os livros não nos tornam apenas leitores, tornam-nos também cidadãos.

A história da Europa é inseparável dos livros que constituíram o seu estilo de criar cultura, ciência, espiritualidade e pensamento. Não podemos considerar a identidade europeia e os seus valores fundantes sem uma conexão ao mundo dos livros que a ajudaram a superar o monolitismo ideológico, as estreitezas de horizontes ou a inconsistência e os limites de visão. A dimensão mais extraordinária do projeto europeu não nasce como uma conquista bélica, como uma conceção económica ou meramente política. Foram os livros que fizeram a Europa. De Homero a Virgílio, a Catão, a Petrarca. Dos tratados de Aristóteles às cartas de Paulo. Das comédias de Terêncio às “Confissões” de Agostinho. Das fantasias de Lucrécio à “Summa” de S. Tomás. Dos trovadores medievais a Dante ou a Camões. Dos panfletos de Voltaire a Marx. De Hegel a Freud. De Dostoiévski a Joyce. De Simone Weil a Maria Zambrano. Em momentos particularmente duros da história europeia surgem algumas das mais belas declarações de amor pelos livros. Recordo Thomas Mann, ao partir em exílio para os EUA, querer ler e comentar, durante a longa travessia oceânica, o “Dom Quixote” de Cervantes. Etty Hillesum no saco essencial com que entrou no campo de concentração não opta por colocar objetos, mas dois livros: a Bíblia e o volume de poesias de Rainer Maria Rilke.



«Numa das grandes batalhas da última guerra, um destacamento encontrava-se numa situação desesperada. O capelão militar estava presente, e, sentindo que não tinha nada a dizer de aceitável naquela hora, tira do bolso a sua cópia do Novo Testamento, arrancou-lhe as páginas e deu uma a cada homem»



Recordo a história do escritor Józef Czapski, internado entre 1940 e 1941 num gulag: no termo de cada jornada de trabalhos forçados, entre os rigores das temperaturas siberianas, um grupeto de prisioneiros sentava-se em círculo para escutar o seu companheiro Józef Czapski proferir uma série de conferências sobre Proust. Tinha tido pela última vez a obra de Proust entre as mãos em 1939, e temia não voltar a ver um livro. Por isso, as suas lições baseavam-se num trabalho de recuperação da memória daquele colossal universo romancista. Escreve Czapski: «Naqueles momentos pensava com emoção em Proust, que, no seu quarto sobreaquecido e atapetada de cortiça, se teria maravilhado, e talvez comovido, se alguém lhe tivesse dito que, vinte anos após a sua morte, um punhado de prisioneiros polacos, após um dia inteiro passado sobre a neve, num frio que chegava muitas vezes a 40 graus abaixo de zero, escutaria com máximo interesse a história da duquesa de Guermantes». O teólogo Romano Guardini conta que, «numa das grandes batalhas da última guerra, um destacamento encontrava-se numa situação desesperada. O capelão militar estava presente, e, sentindo que não tinha nada a dizer de aceitável naquela hora, tira do bolso a sua cópia do Novo Testamento, arrancou-lhe as páginas e deu uma a cada homem». Protejamos o património cultural que os livros representam. Eles são mapas para decifrar de onde vimos. Mas são também telescópios e sondas apontadas para o futuro.


 

Card. José Tolentino Mendonça
Responsável pelo Arquivo e Biblioteca Apostólicas do Vaticano
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 26.01.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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