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O místico da metalúrgica

«É neste ambiente, muito concreto, descristianizado, duro ao ponto de te esgotares e ficares atordoado, que eu encontro o meu ambiente de vida contemplativa. A imersão neste ambiente é para mim a imersão na vida da Cartuxa ou da Trapa: abandonar tudo, arriscar tudo, vender tudo, por Deus.»

É assim que a 13 de dezembro de 1967 o jesuíta Egied Van Broeckhoven, de 34 anos, descreve o seu compromisso diário na fábrica metalúrgica de Anderlecht, bairro de Bruxelas. Duas semanas depois, o jovem morrerá instantaneamente no trabalho, devido a uma placa de milhares de quilos caída sobre as suas costas.

O trabalho na fábrica e a morte imprevista representam o cumprimento de um percurso apaixonado de procura de Deus, que tinha conduzido o religioso e místico flamengo a viver ombro a ombro com imigrantes e operários. Um testemunho vivo e riquíssimo, agora redescoberta graças à publicação, em Itália, do seu diário, com o título “A amizade. Diário de um jesuíta na fábrica (1958-1967)”. Após a morte de Van Broeckhoven, foram encontrados 26 cadernos de apontamentos, pensamentos e anotações em holandês, de uso pessoal.

Por causa da orfandade, foi educado pelos tios, e aos 16 anos entra no noviciado da Companhia de Jesus, em Drongen, próximo de Gand, seguindo o longo currículo da formação jesuíta.



Entre 1965 e 1967, sempre na capital belga, trabalha em várias fábricas como encarregado da fusão do ferro e da moldação em areia. Antes (agosto-novembro 1965) está na K., fábrica de onde é despedido depois de três meses de trabalho, quando a direção descobre que o operário Van Broeckhoven é um padre



Já nos anos do estudo, durante o verão, liga-se a algumas famílias operárias e imigradas que vivem no porto de Antuérpia, onde tinha nascido uma pequena comunidade de jesuítas, sob a orientação de Ferdinand Bellens, com quem Egied construirá uma amizade profunda. Ordenado sacerdote a 8 de agosto de 1964, no ano seguinte termina o percurso de estudos teológicos, e decide dar seguimento ao desejo de servir «os pobres mais próximos», isto é, aqueles que vivem invisíveis nas grandes cidades.

Com dois confrades, Van Broeckhoven estabelece-se em Anderlecht. Celebra missa no bairro vizinho de Bom Air, partilha as refeições com os operários provenientes de diferentes contextos culturais e religiosos, visita e frequenta as suas famílias.

Entre 1965 e 1967, sempre na capital belga, trabalha em várias fábricas como encarregado da fusão do ferro e da moldação em areia. Antes (agosto-novembro 1965) está na K., fábrica de onde é despedido depois de três meses de trabalho, quando a direção descobre que o operário Van Broeckhoven é um padre; depois (novembro 1965-agosto 1966) trabalha na metalúrgica L., onde sofre um acidente que o obriga a um mês de convalescença; a seguir (janeiro-maio 1967) passa cinco meses numa fábrica de folhas de metal, antes de ser novamente despedido; por fim, encontra trabalho em P., fábrica onde morrerá.

Submetido aos esgotantes ritmos da cadeia de montagem, Van Broeckhoven é feliz por estar exatamente como os outros «para poder testemunhar de modo mais profundo um amor mais humilde, mais acolhedor, discreto e sem pretensões». As periferias de Bruxelas tornam-se para ele a sarça ardente, lugar do encontro entre Moisés e o Senhor: «Quando pensamos na criação divina – escreve a 13 de março de 1966 –, pensamos sempre num passado mítico ou num futuro santo, mas é fonte de alegria descobrir que esta criação mítica e santa é o mundo concreto de hoje: aqui, agora, Bruxelas, estes homens concretos, nesta metalurgia imunda, os nossos amigos, tudo isto constitui a realidade, e esta realidade é santa porque é o único lugar em que Deus pode vir ao nosso encontro, e portanto o único lugar em que chega até nós».



«Não somos padres especializados nas soluções dos problemas do mundo operário, somos padres no meio das pessoas, que vivem como todas (condições de trabalho, alojamento), e procuram criar uma nova forma de comunidade eclesial (seja autónoma, paroquial ou de outra natureza); em qualquer caso, centrados na Eucaristia»



Na metade dos anos 60, quando Van Broeckhoven começa a trabalhar na fábrica, o movimento dos padres operários tinha recomeçado há pouco a atividade, após uma longa interrupção. Com a aprovação de Roma, estabelece-se que os sacerdotes podem trabalhar nas fábricas e nos estaleiros, sem, no entanto, assumir cargos de responsabilidade sindical; para marcar uma descontinuidade com o passado, recorda-se que os padres na fábrica deviam dedicar-se ao anúncio do Evangelho (a decisão antecipava algumas passagens do decreto conciliar “Presbyterorum ordinis”.

A existência dos padres operários tinha atravessado, com modalidades e consequências diversas, a história das numerosas ordens religiosas envolvidas. Na Bélgica foram muitas as resistências da parte de jesuítas desconfiados de uma forma de apostolado que não pertencia à tradição da Ordem. Van Broeckhoven regista essas dificuldades: «Peca contra o amor quem considera que o apostolado intelectual é o apostolado específico da Companhia. Com efeito, o apostolado da Companhia pode ser exercido também como operário, mestre ou enfermeiro. O que ele tem de específico é ser místico: levar Cristo aos homens, procurando, a partir da intimidade da nossa pessoa, a intimidade profunda dos outros».

Apesar de se definir por vezes como padre operário, e de admirar quem o tinha precedido, Van Broeckhoven recusará, todavia, a identificação com o modelo dos padres operários então difundido. «Não somos padres especializados nas soluções dos problemas do mundo operário, somos padres no meio das pessoas, que vivem como todas (condições de trabalho, alojamento), e procuram criar uma nova forma de comunidade eclesial (seja autónoma, paroquial ou de outra natureza); em qualquer caso, centrados na Eucaristia».

As três partes do diário publicado seguem a evolução da ideia de amizade segundo Van Broeckhoven. Na primeira secção (1958-1959), a amizade com um confrade faz nascer nele a ideia de que as relações pessoais são o lugar privilegiado em que Deus se manifesta e faz conhecer. Desta intuição parte a luta diária a fim de que a amizade se purifique, não fique pela superfície, e para que em toda a relação de amizade resplandeça a presença oculta de Deus; é o que ele chama a «transparência» da amizade.



«Amá-los completamente, de tal maneira que partilhe o seu modo de viver, habitar com eles, enfrentar os riscos da vida, isto é, amá-los concretamente, até às últimas consequências». À pergunta «por que é que foi para a fábrica», Van Broeckhoven responde: para «construir o Reino de Deus»



Na segunda parte do diário (1960-1965), Van Broeckhoven compreende como a amizade vivida em profundidade introduz o homem no mistério de Deus, permitindo-lhe participar na amizade trinitária. «Erra – escreve a 19 de maio de 1965 – quem pensa que eu me dirija aos marginalizados descristianizados para realizar um trabalho pioneiro, para aumentar a reputação da Companhia de Jesus, para escrever livros; vou apenas para fazer o trabalho do pai, para os amar, para os reunir junto do Pai no Filho mediante a força do Espírito. É a única razão, mais que suficiente».

A amizade amplia-se ainda na terceira parte do diário (1965-1967), tornando-se cada vez mais objetiva: a amizade cristã, com efeito, não é apenas uma relação preferencial, mas mostra-se em toda a sua abertura e universalidade na tensão a abraçar cada homem, tornando-se o caminho privilegiado para o encontro com Deus. Van Broeckhoven procura explicar também nesta perspetiva aos confrades as razões da sua insólita opção junto dos operários. «Amá-los completamente, de tal maneira que partilhe o seu modo de viver, habitar com eles, enfrentar os riscos da vida, isto é, amá-los concretamente, até às últimas consequências». À pergunta «por que é que foi para a fábrica», Van Broeckhoven responde: para «construir o Reino de Deus».

São diversos os grandes temas nas páginas de Van Broeckhoven: a necessidade da vida comunitária, da celebração da Eucaristia e da oração, sem as quais a presença na fábrica se esvaziaria de significado (oração e ação, silêncio e palavra não são para ele universos separados); a necessidade de obediência à Igreja (o diálogo com os superiores, a exigência de estar em comunhão com a Companhia e com a Igreja, dado que o apostolado não é uma iniciativa individual); uma reflexão contínua sobre o método e a natureza da missão, que conduz o jovem jesuíta a admitir os seus erros e a procurar desde logo novas soluções.

É interessante como para Van Broeckhoven o diário é um mosaico crucial da sua vocação: trata-se, efetivamente, de um instrumento indispensável para não esqucer as ocasiões da vida quotidiana em que Deus se torna presente. Deus, seguramente, fala através dos factos e das pessoas: uma palavra da liturgia, o sorriso de um colega de trabalho, o acolhimento de uma família de imigrados, os encontros com Gini, operário italiano, com Ahmed, operário muçulmano, com Joseph, sindicalista comunista (que na morte de Van Broeckhoven dirá «para mim, Egied é Cristo»). É evidente como o apostolado nas periferias e nas fábricas de Bruxelas não é para Van Broeckhoven um projeto social, mas a expressão do desejo de encontrar Deus, porque o apostolado é a amizade mais profunda».



«A única maneira de ir verdadeiramente ao encontro destes pobres homens (…) e a única maneira de amá-los, é tornar-se um deles (…), ser desprovido de tudo como eles»



Nas suas reflexões é assim eliminado todo o dualismo entre Terra e Céu, entre humano e divino. O acontecimento por excelência que torna possível o encontro com Deus na Terra é a incarnação: «Não se pode explicar de melhor maneira o significado da Incarnação do que comparando-a ao gesto de estender o braço para abraçar alguém. É o gesto que exprime de maneira clara a intenção de atrair o outro para a sua intimidade e de envolver-se com a intimidade do outro».

Este gesto de Cristo representa para Van Broeckhoven o paradigma da amizade: «É o olhar de Jesus que se leva para dentro da amizade. Jesus fixou sobre ele o olhar e amou-o».

«Deus é amor, desejo de ver Deus»: ao abrir o seu cacifo na fábrica após o incidente mortal, será encontrada aquela frase transcrita numa folha. Nela está o sentido último daquele compromisso diário para levar o Senhor da vida aos «próximos mais pobres», caminhando, passo a passo, com eles. «A única maneira de ir verdadeiramente ao encontro destes pobres homens (…) e a única maneira de amá-los, é tornar-se um deles (…), ser desprovido de tudo como eles. É por isso que Cristo quis tornar-se o último de todos; de outro modo, os pequenos nunca o teriam amado verdadeiramente. Aquele que se eleva sobre os outros não pode ser amado verdadeiramente».


 

Silvia Gusmano
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 03.04.2019 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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