Na sua obra sobre a perene essência da oligarquia portuguesa, O Conde de Abranhos, Eça de Queirós, a certa altura, põe o herói político da obra a dizer o seguinte: «Não podemos dar ao operário o pão na terra, mas obrigando-o a cultivar a fé, preparamos-lhe no Céu banquetes de Luz e de Bem-aventurança!» («Carta à Exma. Sr.ª Condessa d’Abranhos», in EÇA DE QUEIROZ, O mandarim. Alves & C.ª. O Conde de Abranhos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 201). Logo depois, enuncia-se a magnífica conclusão: «E quem negará aí que não seja esta a verdadeira maneira de promover a felicidade das classes trabalhadoras?» (Ibidem).
Acima de toda e qualquer consideração ideológica, coeva ou puramente teórica, o simpático escritor burguês põe a claro o falso princípio político-económico sobre o qual se funda, desde sempre, isso que constitui a ação que condena os seres humanos que criam os bens a uma pobreza ou mesmo miséria que nunca lhes competiria não fora a aplicação de tal mesmo falso princípio político-económico.
Esqueçam-se as teorias, mais ou menos sofisticadas e intelectualmente honestas que procuraram explicar isso a que a citação de Eça se refere. De forma chã, pense-se o que, na brevidade da sua enunciação, é dito.
Se se perceber que, literalmente, «operário» é um termo que se refere a esse que «opera», que «faz obra», isto é, que trabalha e, trabalhando, produz bens, quaisquer, situamo-nos muito longe do sentido historicamente limitado que «operário» tinha nos tempos em que Eça escreveu, dos sentidos limitados, vários, que foi tendo ao longo do tempo.
Operário é, então, precisamente, todo o que «opera», todo o que trabalha e, trabalhando, cria; cria isso que é o bem, sempre produto cultural: é facto humano, não natural. Neste sentido, nada existiria em termos de cultura, isto é, de produção humana total, sem a realidade existencial do «operário».
O operário é esse que cria cultura, seja ele quem for, seja que modo de cultura for. Neste sentido, o próprio «patrão» que assim também opera é um operário. O termo «operário», fundamentalmente, não carrega a carga próximo-maniqueia com que habitualmente surge, pois apenas se opõe a esse que não opera, que nada opera, indiscernível de um cadáver.
Ora, sendo o operário esse que cria os bens, em toda a sua variegada totalidade, é à sua operação que tudo que é bem em termos da atividade humana se deve. É esse que opera que é, através da sua operação, o criador, o poeta do bem humano, da humana riqueza.
Neste sentido, o operário não é um ‘pobre desgraçado’, mas esse que tem o poder, e a eficácia que dele decorre, de acrescentar bem ao bem já existente. O operário, através deste seu poder e eficácia, é algo de ‘divino’, pois é realmente criador, ao introduzir sempre algo de novo, através do seu labor, acrescentado ato e ser ao preexistente. Isto é formal e materialmente criar. Tal é honestamente indesmentível.
Num sentido muito profundo, que é o que fundamenta a palavra de Cristo, em Mateus 6, a qualquer forma de trabalho, mais latamente, de ação, corresponde imediatamente, ao nível do ser, uma recompensa que coincide exatamente com o absoluto do ato realizado: quando Maria diz que sim ao apelo de Deus veiculado pelo anjo para participar na incarnação do Verbo, já tem exatamente em tal ato a sua recompensa – a recompensa de Maria é o seu ato, na realidade ontológica deste último. Outro ato de Maria, outra recompensa.
A recompensa não é distinta do absoluto do ato realizado, com que coincide. Deus não trata a humanidade como quem faz festas a um cão bem comportado, antes reconhece a grandeza própria e intrínseca do ato, de cada ato de cada ser humano. É este ato e o respetivo reconhecimento isso que constitui a recompensa. O que Cristo diz é algo como: ‘sei o que foi o ato, reconheço tal ato em seu absoluto ontológico, está realizada a recompensa’. Este trecho do Evangelho tem um peso ontológico terrível.
Neste sentido crístico profundo, é o absoluto ontológico do ato que constitui a recompensa ontológica própria e irredutível de cada ato; tal recompensa coincide ontologicamente com o que cada ser humano é como produto auto-poiético de seu mesmo ato: assim para Maria, assim para Cristo, como já tinha sido, de modo paradigmático-teórico, para Job, a quem Deus reconheceu a grandeza ontológica própria, abençoando isso que Job fez de si próprio em seu mesmo ato.
Esta lógica diamantina é ontologicamente inexorável. Por exemplo, se todos os atos não forem atos de bem, a recompensa é ser-se esse que os realizou, na plenitude da sua maldade. É a figura do diabo. Assim é, também, para todos os que paradigmatiza. Tal mal e tal agente do mal não é obra de Deus, não é obra de A ou de B, é obra do próprio diabo; é obra de cada um dos paradigmatizados.
O símbolo é evidentíssimo: para lá do bem criatural que Deus dá, como absoluto de possibilidade própria, cada ser humano é o que de si próprio fizer. É fácil entender a diferença ontológica, a esta luz, entre Hitler e Teresa de Calcutá. O ato que de si fizeram é eterno. Não é, em seu absoluto, aniquilável. Mesmo sob a misericórdia de Deus, o ato de um é diverso do ato do outro, todos os seus atos são diversos e diversos permanecerão sob o selo da eternidade. A escatologia não é comércio, é pura ontologia.
Compreende-se, assim, a importância da ação sempre norteada por princípios de bem, de acrescento de positividade ontológica a isso que é, em cada instante considerável, o ‘estado de bem’ do mundo.
É esta a missão concreta e irredutível de cada ser humano na sua condição universal de «operário». Esta condição não é, sequer, ‘religiosa’, estritamente: aplica-se a toda a humanidade, ateia que seja. A religião assumiu esta condição e construiu sobre ela um discurso lógico que refere ao absoluto divino o dom do absoluto de possibilidade ontológica de ação humana. Sem reduções, sem desculpas: «ai!, enganei-me e matei o Menino Jesus!».
Sendo assim, como não «dar ao operário o pão na terra» em nome do absoluto do bem que criou? Como, se é ele, todos eles, quem cria tal pão? Como, se o absoluto que o pão simboliza é obra sua? Mesmo o próprio sentido de se lhe «dar» o pão é absurdo, pois que quer dizer exatamente «dar» a alguém isso que já é seu porque o criou? Isto é válido para o fruto do trabalho de todos, também do «patrão»; não é uma questão social ou ideologicamente económica que está em causa, mas ontológica.
Note-se que não se trata de uma questão de «valor», noção que inquina de forma burguesa aviltante o próprio pensamento de Marx, mas da relação intrínseca e insubstituível entre o bem criado e o seu criador. No limite, e como o próprio Deus, neste sentido, é o supremo operário, segundo esta lógica perversa, tendo Deus acabado de pôr em ato a criação, logo se lha retirava, seu operário, seu absoluto criador.
A criação não acrescenta valor, acrescenta ato; não é uma questão de apreciação judicativa-valorativa, é uma questão onto-poiética, em que, através da ação do criador-operário, se acrescenta realidade ontológica positiva àquela que já existe. Nada disto é valor; tudo isto é ato, é ser, é absoluto ontológico.
Na frase de Eça, o que está em causa é uma questão de poder, entre criador e outrem – um «outrem» qualquer –, manifestada na sua dimensão política através de um ato de parasitismo. Pense-se bem o que seria retirar – na realidade, porque é um ato de violência, seria tecnicamente roubar – a Deus o fruto ontológico absoluto que é a criação. Esse que o fizesse seria o primeiro e maior parasita porque se apropriaria de um imenso bem que não criou, bem universal, aliás.
Ora, este ato, impassível de ser realizado na dimensão universal que implica, serve de paradigma a todos os incontáveis atos de parasitismo que têm constituído grande parte da vida da humanidade. Não se trata de uma questão tópica, oriental ou ocidental, antiga ou moderna, mas da matriz de toda a violência – não só de tipo ‘económico’ – da história da humanidade.
Todo o ato em que se aliena o fruto do trabalho de alguém deste mesmo alguém constitui um ato de parasitismo. Seja quem for que o faça, ser humano ou pseudo-divindade sobre este moldada.
A humanidade, que não é propriamente constituída apenas por bestas parasitárias e predadoras, para evitar a violência do parasitismo, criou um modo político de relacionamento económico que mecanicamente obvia a tal parasitismo: é o prosaico – mas ‘divino’, se bem usado – comércio material. Pelo comércio material, pela troca de bens materiais – sem formas de perversão parasita –, pode cada operário, isto é, cada ser humano enquanto criador, receber o que lhe é ontologicamente devido pelo ato de ter criado o que criou. Tal opera-se através da relação de troca de bens, mutuamente benéfica.
Não dar «o pão na terra» ao «operário» significa privá-lo do bem que lhe é devido, devido não por qualquer forma de iniciativa alheia ao processo criativo, mas porque é aquele que cria o bem (neste sentido, a adoração do Deus-operário acontece como forma de reconhecimento pelo trabalho de criação do mundo, sem o que não haveria mundo).
Pela negação do pão devido se escraviza o operário. Não interessa quem o faz. Contraditoriamente, a relação preserva o bem-comum quando, através do comércio, todos os operários (pode ser o ‘patrão’ como, também ele, operário) recebem a recompensa a que ontologicamente têm direito e que decorre do seu ato criador.
Este modelo, que é o único que permite o bem-comum – o mais são formas parasitárias, mais ou menos bem disfarçadas –, não autoriza que alguém fique com a recompensa ou parte da recompensa que corresponde a um outro «operário». Não permite, assim, usar os outros como forma de, através da negação do seu «pão» devido, se receber partes de «pão» a que não se tem ontologicamente direito.
Note-se que nada disto diz respeito ao chamado «Direito», pois depende apenas da estrutura ontológica da criação de bens, de tudo independente, salvo da capacidade onto-produtora humana. Eventuais regras, só se justificam se respeitarem esta estrutura ontológica da criação humana, da cultura, em seu sentido mais lato.
Eça aponta, ainda, para uma outra perversão, aliás, comum sob muitos modos, mais ou menos bem disfarçados, de perversidade política parasitária, e que consiste em, na relação comercial entre os bens dos diferentes «operários», substituir-se o devido «pão na terra» pelo cultivo da ‘fé’, isto é, de algo que quem parasita o pão alheio entende impor como fé quer em termos de noção quer em termos de ato.
Neste ponto, toca-se a blasfémia quer religiosa quer simplesmente antropológica, ao usar o sentido mais elevado que a humanidade foi capaz de alcançar, sob a forma da intuição do divino, como substituto propositadamente imaginário da possibilidade de bem na terra, bem de que esse que assim é enganado é criador.
A lógica subjacente a tal engano é, também ela, lapidar. Retirando-se ao operário o acesso ao bem que criou, acaso haja mesmo um Deus misericordioso (que, entre outros atos, recompense o roubado para lá da vida mundana), é ótimo: quem rouba o devido ao operário pode ganhar duplamente, pois fica no mundo com o que é devido a outro e pode ainda, aproveitando da misericórdia do tal Deus, beneficiar do perdão da malfeitoria; por sua vez, aquele que foi roubado, na terra, recebe indemnização ‘no céu’.
Acaso não haja deus algum e tudo seja mera vaporização pseudo-espiritual da matéria, nada havendo senão a bruta força dos vivos violentos e a mansidão dos outros, pode quem rouba encher a sua dantesca pança, sem quixotescos receios de penalização, pois, ladrão e vítima mais não serão, mais dia menos dia, do que pó imemorial.
Quer num caso quer no outro, vence a lógica parasita dos violentos, que apenas subsistem à custa do bem que roubam aos outros isso que lhes pertenceria de ontológico direito.
É este, em ambos os casos, um mundo de bestas dominantes, ainda que com aspeto humano. É este o paradigma das suas regras.
Ora, o cerne da fé, que nada respeita ao monstro político invocado por Eça nas boçais palavras do vil conde de Abranhos, funda-se sobre a intuição, nunca perfeita, pelo menos nunca completa em termos mundanos, de um absoluto e infinito bem que de tudo é modelo de possibilidade e que a tudo convoca a uma perfeição semelhante.
A fé é um antropologicamente nobilíssimo instrumento de possibilidade de engrandecimento do ser humano, que tem, no objeto de sua fé, um paradigma de perfeição inesgotável, tendo, assim, também, a possibilidade de humano progresso ontológico, cujo limite não é algo finito, mas isso que é intuído como infinito, inesgotável, inabarcável e também indomável e inapropriável.
A fé estabelece a relação entre o ente finito, mas com sentido de possibilidade de infinitude, e isso que intui como infinito em ato, perfeito. Mesmo na mais ‘simples’ fé, é em algo com esta infinita dignidade ontológica que se acredita, não num comércio vil entre poderosos e impotentes. A fé não é própria de impotentes, mas dos que assumem a potência própria de ser como semelhantes de Deus.
Como se encaixam aqui os Abranhos todos do mundo? Não se encaixam. Esta incompatibilidade ontológica é a sua recompensa. O que lhes falta e sempre faltará, mesmo com toda a misericórdia divina, que não é mágica, constitui o seu pessoalíssimo inferno. Este, pelo absoluto de ausência de bem que o constitui, é eterno.
O bem destruído nunca é recuperável: eis a eternidade do inferno.
Está nas mãos de cada ser humano poder construir o seu ‘pequeno ato de céu’, de bem, de simples bem. O mais é nada.