Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura, respondeu assim:
Ele há um princípio quando era o Verbo…
“Esta fórmula ‘sem risco’ é ignobilmente anti-evangélica.” – Georges Bernanos.
"A cultura, por dimanar imediatamente da natureza racional e social do homem, precisa sempre de uma justa liberdade para se desenvolver e de uma legítima autonomia de acção, em conformidade com os seus próprios princípios de actuar com autonomia" - afirma a "Gaudium et Spes". o Concílio Vaticano II deu um sinal novo, como sal da terra, ao atribuir importância significativa ao tema da cultura - assaz incómodo, sobretudo considerando as relações, muitas vezes de perplexidade e de incompreensão, entre a intelectualidade e a Igreja. "Tem, por conseguinte, [a cultura] direito a ser respeitada e goza de uma certa inviolabilidade, com a condição, evidentemente, de salvaguardar os direitos da pessoa e da sociedade particular ou universal, dentro dos limites do bem comum" (n? 59). No mundo, a justa liberdade, a legítima autonomia e a dignidade humana é que estão em causa. Que é a cultura senão um apelo permanente à criatividade e à actividade de semear ideias? Como diria o nosso Padre Vieira: "os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens". A exigência de compreensão dos sinais dos tempos obriga a um esforço especial de entendimento dos elos que se estabelecem entre o mundo cristão e o mundo moderno. A incerteza e a procura de verdade suscitam a necessidade de trilharmos caminhos difíceis e arriscados, por entre as dúvidas e os erros - em vez da tentação do conformismo e das verdades supostamente adquiridas, que ignoram as diferenças e a compreensão dos outros…
A "heterodoxia" de Eduardo Lourenço é um exemplo desse inconformismo contra os "bezerros de ouro" - as novas idolatrias. "É a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações, nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida em si mesma". E que seria esse inconformismo, senão a consciência absoluta da pluralidade histórica das ortodoxias, que a diversidade dos povos, das nações e dos homens suscita continuamente"? E é assim que o Absoluto tem de ser visto como luta. "Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz mas a espada; vim separar o filho de seu pai; a filha de sua mãe; a nora de sua sogra; de tal modo que os inimigos do homem serão os seus familiares" (Mt. X, 34-36). Na Razão coexiste "razão e irrazão", dúvida e paradoxo.
Sempre a agonia e a luta. Sempre a contradição e a luta. Este é o mundo da cultura - mundo de diversidade e do combate criador. Como diria Miguel de Unamuno, a pessoa humana é uma realidade dividida e o cristianismo -urna unidade agónica. "A dúvida, mais a pascaliana do que a cartesiana ou dúvida metódica, a dúvida da vida - vida é luta -, e não o caminho - método é caminho -, supõe a dualidade do combate". E G. K. Chesterton leva-nos a ver o mundo às avessas, para melhor descobrirmos a verdade - uma vez que "as pessoas deste mundo não conhecem a- fundo o mundo que habitam e, por essa razão, acreditam cegamente, em meia dúzia de máximas cínicas que estão longe de ser expressão da verdade". Eis porque é importante essa luta do cristianismo e o permanente lançamento da semente da verdade, com todas as consequências incertas, que obrigam a ter em consideração "os direitos da pessoa e da sociedade particular ou universal". A história é uma caminhada incessante, rumo à encruzilhada das múltiplas formas de procurar a verdade. Correr todos os riscos, contra a segurança ignóbil e triste.
António Alçada Baptista, na senda peregrina de Fernão Mendes Pinto, costuma recordar uma dedicatória de Bernanos: "tudo o que há de bom na história do mundo foi feito pelo misterioso acordo entre a humildade e a ardente paciência do homem com a doce piedade de Deus". Isto, apesar dos poderes instituídos, contra a omnisciência dos Doutores e contra- a incurável frivolidade das pessoas sérias ... E João Bénard da Costa lembra Nuno de Bragança quando este dizia acreditar em que, "para alimentarmos o medo, não há como fingirmos que não o temos". "Metemos medo à criança para a meter na ordem do medo e ainda mais ao adolescente quando ele começa a nos meter medo ... " E não houve aquele viajante que foi correr o mundo à procura do medo? Estamos sós sempre perante nós mesmos e ante o mistério da Ressurreição, como enigma- fundamental da cultura humana - entre a Graça e a dúvida. "Mas as coisas têm máscaras - diz-nos Sophia - e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho" (Coral, 1950). Quantas vezes não temos a tentação de considerar como certo um sentido, quando, de facto, somos levados pelo conhecimento e pela busca da verdade, a deixá-lo ou a pô-lo sob o critério critico?
Os sentidos no mundo contemporâneo cruzam-se, encontram-se e separam-se. A diversidade e o pluralismo não podem significar indiferença. E a fé fica ou desvanece-se - persiste ou esvai-se. Mais importante do que toda a azáfama é a procura do sentido ecuménico da vida ou do aprofundamento religioso, para o qual o diálogo é insubstituível. Mas, como no caminho de Emaús, inesperadamente, descobrimos que não estamos sós, que Alguém caminha connosco, para repetir os gestos essenciais. E a cultura toma-se um momento repetido e livre, sinal supremo da dignidade.