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Perguntamos: "O que é hoje a Cultura Portuguesa?"

Alexandra Lucas Coelho, jornalista do "Público", respondeu assim:

 

Não o suficiente

 

Há dias, um homem que não é músico mas toca violino¬e gostava de tocar oboé, se não fosse tarde demais -contou-me que nascera, 12 anos antes do 25 de Abril, numa aldeia sem luz eléctrica a oito quilómetros de Pombal. Os pais estavam emigrados em França. Vivia com os avós. Para ir à escola, fazia todos os- dias 16 quilómetros sozinho - no Verão, de bicicleta; no Inverno, a pé. Era um caminho de montanhas, deserto quase sempre. No regresso, às escuras pela noite, ouvia por vezes cães ao longe. Teve medo, muitas vezes. Foi assim da primária ao fim do liceu, anos e anos. Gostaria de ter sido músico. Veio a estudar engenharia, como outros estudaram direito ou medicina - outros, entre os mais afortunados filhos de pobres que também gostariam de ter sido músicos, ou outra coisa.

Antes das mudanças que a revolução trouxe, a Fundação Gulbenkian tentava cumprir o que o Estado não cumpria - na cultura, na educação, na ciência. Tinha bibliotecas itinerantes, que formaram gerações, nos lugares mais ermos. Tinha ciclos de cinema. Além da música, do ballet, do museu, das bolsas. E nos anos 80 teve o Centro de Arte Moderna e o Festival Acarte, que abriram aos espectadores portugueses caminhos inovadores da produção contemporânea nas artes plásticas e performativas.

Hoje, a Cinemateca Portuguesa em Lisboa exibe cinco filmes por dia. Instituições como o Centro Cultural de Belém, a Culturgest, museus como o de Serralves ou o do Chiado vieram preencher lacunas a que Gulbenkian procurava atender. Em vários pontos do país funcionam dezenas de grupos de dança e de teatro, e realizam-se dezenas de festivais (de cinema, de artes de palco). Temos circuitos de galerias não apenas em Lisboa e Porto, pólos culturais descentralizados (Teatro Viriato em Viseu, Centro Coreográfico de Montemor-O-Novo, Centro para o Estudo das Artes de Belgais, Casa das Artes de Famalicão .. ). Há uma rede de bibliotecas públicas com itinerâncias culturais e programação própria - o que levou a Gulbenkian a optar pela extinção das bibliotecas itinerantes.

Alguns destes investimentos são estatais, outros provêm de instituições privadas ou da sociedade civil. Exemplo muito produtivo em relação à sociedade civil é a situação das livrarias. A chegada da cadeia FNAC a Portugal, consolidada hoje com a expansão por quase uma dezena de lojas, não impediu que um outro modelo de livraria nascesse e crescesse com notável sucesso. A Navio de Espelhos (Aveiro), a Vemos, Ouvimos e Lemos (Serpa), a Fonte de Letras (Montemor-o-Novo) apostaram não apenas nos fundos de catálogo (uma oferta alternativa à da veloz rotação de novidades das cadeias de livrarias), como numa programação cultural com exposições, debates, concertos, em pequenas áreas de café e na atenção às crianças - são mini¬centros culturais, empenhados, a partir do modelo inspirador da Ler Devagar, em Lisboa.

Há dois anos, a mudança governamental veio reacender o debate sobre as prioridades do Estado no apoio à Cultura, entre os ditos pólos do património e da criação contemporânea. O Governo optou por fundir dois dos institutos através dos quais apoiava, respectivamente, as artes -plásticas (IAG) e as artes de palco (IPAE). O resultado da fusão está por avaliar - coincidindo com a entrada em funções do novo Instituto das Artes (IA), foram convidados a assegurar a representação portuguesa na próxima Bienal de Arte de São Paulo um artista plástico (o escultor Rui Chafes, dos criadores portugueses hoje mais prestigiados internacionalmente) e uma coreógrafa (Vera Mantero), que vão criar uma obra em conjunto, dentro do espírito a que o IA chama de transversalidade na criação contemporânea.

Além de Rui Chafes, artistas como Helena Almeida (que será uma das três representantes portuguesas na Bienal de Sidney, comissariada peja portuguesa Isabel Carlos), Jorge Molder, Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft ou Julião Sarmento têm uma projecção significativa no circuito internacional das artes plásticas - e Paula Rego, residente em Londres, é um caso à parte.

Ao reconhecimento absoluto de nomes como Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura, na arquitectura, Manoel de Oliveira e João César Monteiro, no cinema, Amália, Carlos Paredes, Maria João Pires, Pedro Burmester, na música, Fernando Pessoa, José Saramago e António Lobo Antunes, na literatura, têm-se vindo a juntar novos cineastas, escritores, fadistas. Editam-se em Portugal mais livros do que nunca, organizam-se vários festivais de rock por ano com milhares de bilhetes vendidos.

Este já não é inteiramente o país em que nasceu aquele homem que não foi a tempo de aprender a tocar oboé. Há quem teime e faça - com Estado, sem Estado ou apesar do Estado.

Mas continua a ser o país de que Maria João Pires, a fundadora do Centro de Belgais, tem vontade de desistir, por exaustão - face à burocracia e ao incumprimento. Continua a ser o país em que a longamente esperada Casa da Música se deixa arrastar em desavenças de folhetim, sem que se perceba cabalmente como no desenlace o nome a cair pode ser o de Pedro Burmester. Continua a ser o país em que, alerta Marçal Grilo, "oitenta por cento dos empresários têm menos de nove anos de escolaridade, 60 por cento da população tem menos de seis anos de escolaridade, 50 por cento dos portugueses estão contra a aprendizagem seja do que for". Continua a ser o país dos chumbos a matemática endémicos e dos programas de português com horóscopos, concursos de TV e esquemas com setas para poemas de Sophia e Herberto.

Mal seria que 30 anos de democracia e quase 20 de integração na União Europeia não tivessem melhorado as condições de criação e acesso à cultura em Portugal. O país mudou. Mas é justamente por ter mudado que sabemos como não mudou o suficiente.


 

Alexandra Lucas Coelho
In Observatório da Cultura 2 (abril 2004)
Imagem: Bigstock.com
Publicado em 01.09.2025

 

 
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