«Em 1815, era bispo de Digne o sr. Charles François Bienvenu Myriel, um velho com mais ou menos setenta e cinco anos, que aí residia desde 1806»: é com estas palavras que abre o livro primeiro de “Os miseráveis”. A obra-prima de Victor Hugo, de 2600 páginas, começa precisamente com a apresentação detalhada de um personagem-chave do romance, definido pelo autor como «um justo». Com efeito, é a partir do seu encontro com Myriel no palácio episcopal de Digne, pequena cidade montanhosa da Alta Provenza, e graças à ajuda paternal do prelado, que o ex-condenado Jean Valjean – herói da saga – empreenderá o seu percurso de redenção, até se tornar “Monsenhor” Madeleine, o benfeitor dos pobre e dos descartados que abundavam na cínica sociedade francesa do século XIX.
Antes de redigir “Os miseráveis”, assim como para os seus outros romances histórico-sociais, Hugo documentava-se com precisão, e muitas vezes inspirava-se em histórias, lugares e personagens reais. E é assim que, após a publicação do livro em 1862, se descobriu que «Myriel existiu realmente: o seu nome era François Melchior Charles Bienvenu de Miollis», como recordou D. Emmanuel Gobilliard, atual bispo de Digne, ao anunciar a abertura oficial da fase diocesana da causa de beatificação do seu longínquo antecessor, votada pela Conferência Episcopal Francesa, durante a mais recente assembleia plenária que decorreu há poucos dias em Lourdes.
A semelhança entre os dois bispos, o verdadeiro e o da ficção, é impressionante, como já acentuava Francis de Miollis, neto do primo, alguns meses depois de o livro ter sido dado à estampa: «Os detalhes que o autor dá sobre a origem, a família, os hábitos, o carácter de caridade inesgotável, as virtudes evangélicas do seu carácter, não podem deixar qualquer dúvida sobre a sua identidade com o meu tio. Todos estes detalhes referem-se da maneira mais exata ao meu venerável tio».
Até o primeiro encontro entre o prelado e o ex-detido narrado do livro é inspirado num episódio real. A ligação é explicitamente afirmada em 1909 pelo autor das “Opera omnia” de Victor Hugo: «Jean Valjean existiu realmente em carne e osso. Era Pierre Maurin, condenado em 1801 a cinco anos de prisão. Miollis foi o bispo que o acolheu em sua casa». O escritor ouviu falar desta história graças aos familiares do prelado que conheceu alguns anos depois em Paris.
Nascido em Aix-en-Provence em 1753, Miollis foi ordenado sacerdote em Carpentras, próximo de Avinhão, em 1777. Passou vários anos em exílio na Itália, por se ter recusado a prestar juramento à Constituição civil do clero durante a Revolução Francesa. Nomeado bispo de Digne em 1806, ocupou esta missão até 1838, com 85 anos, quando as suas forças declinaram. Morreu na sua cidade natal em 1843.
Durante os 32 anos do seu episcopado demonstrou uma generosidade inesgotável para prover à falta de recursos dos pobres e para auxiliar as congregações religiosas necessitadas da sua diocese. No momento da sua morte, várias testemunhas recordaram a simplicidade do seu modo de vida, a sua incessante caridade e as suas palavras justas e incisivas, em contraste com as dos bispos do seu tempo.
«Quando cheguei à diocese de Digne, há um ano, pude notar o quanto a figura de D. Miollis era importante para a Igreja local. Todos se recordam que já no dia do seu funeral, há 150 anos, estava presente uma multidão imensa que desde esse momento o considerava santo», afirmou D. Gobilliard.
«Durante o seu longo ministério ao serviço da sua diocese, o bispo demonstrou uma energia prodigiosa. E era muito necessária para satisfazer as necessidades dos pobres e dos doentes, num território que compreendia dois departamentos», sublinha a Associação Mgr. de Miollis, criada em 2019 com o propósito de dar a conhecer a vida e a obra pastoral do bispo.
Mas o que mais transparece dos testemunhos daqueles que com ele se encontraram é «a sua doçura, a sua paciência, a sua humildade, como o recorda o mobiliário rudimentar do seu gabinete, a simplicidade do seu vestuário, a carreta que utilizava para as suas viagens».
«O seu zelo apostólico conduzia-o a todo o lado, ao longo de trilhos íngremes, nos cumes alpinos, nos vilarejos onde, segundo a memória humana, nunca se tinha visto passar o báculo de um bispo», sublinha a Associação. Trabalhador incansável ao serviço da evangelização e da ajuda aos pobres, «Miollis continua a inspirar-nos ainda hoje. Se a sua caridade, a sua doçura e a sua humildade nos tocam, é porque nos reconduzem à essência da mensagem evangélica e ao papel do bispo».
Para D. Gobilliard, «aquele que guiou a Igreja de Digne durante quase quarenta anos com humildade e dedicação representa também uma fonte de inspiração e um modelo a seguir para nós, bispos, num momento em que a Igreja tem de enfrentar o escândalo dos abusos».
«Ficamos atónitos ao ver como Miollis viveu, tanto pela simplicidade como pela luminosidade e a força que inspira. Num momento agitado da vida do nosso país, soube realçar o essencial: a alegria de saber-se amado por Deus, e a alegria de amar como Deus», aponta por seu lado Jean-Philippe Nault, bispo emérito de Digne.
«Pastor infatigável, missionário zeloso, atento a todos e sobretudo aos mais pobres… deixa atrás de si a magnífica imagem do bom bispo, pai e irmão de todos, que percorre incansavelmente as estradas da sua diocese. Possa o seu exemplo suscitar nos nossos corações um amor cada vez maior pelo Senhor e por cada um dos nossos irmãos.»
