Numa carta enviada a seus Pais, residentes nos Estados Unidos da América do Norte, datada de 29 de dezembro de 1969, a Tenente Enfermeira do Exército, Lynda van Devanter, a prestar serviço no Vietname, escreveu o seguinte (trad. nossa): «Na manhã de Natal saí de serviço e abri todas as minhas encomendas sozinha. Tive tantas saudades vossas, que chorei até adormecer. Estou de novo a começar a chorar. É ridículo. Parece que ultimamente passo o tempo todo a chorar. Odeio este lugar. Este é, agora, o sétimo mês de morte, destruição e sofrimento. Estou cansada de ir dormir ouvindo foguetes, morteiros e artilharia que disparamos ou que disparam contra nós. Estou farta de encarar, todos os dias, uma nova molhada de crianças feitas em pedaços. São apenas miúdos – com dezoito ou dezanove anos de idade! Mete nojo! Vidas inteiras à sua frente – cortadas. Estou enojada de morte com isto. Tenho de sair daqui… Paz. Lynda» (Ref. no fim do texto).
Lynda trabalhou em hospitais de evacuação, onde chegavam os resultados humanos das batalhas. Teve conhecimento em primeiríssima mão das consequências humanas dos atos de guerra. A sua expressão «estou enojada de morte com isto (I’m sick to death with it)» constitui manifestação do que tais consequências da guerra deveriam provocar em todo o ser humano digno da designação: uma total repulsa relativamente a tais efeitos e, consequentemente, em relação à própria guerra.
Esta carta foi escrita precisamente há 49 anos, dia por dia. Durante quase meio século não apenas os seres humanos – assim autoproclamados – não só não desistiram de agir em guerra como incrementaram tal tipo de ato, fazendo dele o protótipo, mais ou menos evidente, do seu comportamento normal. Desde o modo clássico – errado, mas conveniente como meio de ocultação do fundamental no ato de guerra – de «fazer guerra», entre “estados”, “povos” ou “nações” (tudo abstrações hipostasiadas), até ao modo ideológico comum de pôr os seres humanos universalmente em relação como bestas depredatórias, a guerra é imperial senhora do modo de viver paradigmático da presente humanidade.
O contraditório da guerra não é a paz, senão como resultado final, não como ação: a paz não é, por si mesma, um ato, mas o possível resultado integrado de todos os atos da humanidade. Este conjunto total integrado dos atos de todos os seres humanos – tem mesmo de ser de todos, ou não há paz – é o bem-comum.
É o bem-comum, como totalidade dos atos de todos os seres humanos no sentido do bem de todos, que constitui o contraditório da guerra.
Tal contraditoriedade agente da guerra, é, assim, de uma exigência máxima. Não, é, no entanto, utópica ou atópica, pois nada de logicamente estrutural impede a sua realidade.
A realidade do bem-comum e da sua consequência, a paz, é impedida pelo modo concreto como cada ser humano – eu, por exemplo – vive a sua possibilidade de humanidade.
Em termos simples – mas não simplistas (acusação das bestas que sabem bem o que não devem fazer) –, cada ser humano, como possibilidade sua inalienável, tem, perante cada possibilidade de ato (seu) a escolha de agir como ser humano propriamente digno do nome ou como mais uma besta, ainda que com forma externa humana. No entanto, a forma humana não é dada pela irradiação luminosa da sua pele, mas pela conformação interior ética, origem de toda a sua ação: é a este nível que se define a essência e substância ativa de cada ser humano – besta ou ser humano real? Tal decide-se possível ato a possível ato, ato realizado a ato realizado.
Ora, cada ato, seja qual for, seja em que âmbito analítico for, pode introduzir bem – que é sempre, como propriamente bem, bem-comum – no mundo ou nele não introduzir bem ou, ainda, nele destruir bem já existente.
Cada ato que impede um bem possível, com imediatas ou mediatas consequências sobre o bem-comum, é um ato de guerra, pois destrói um bem. É esta a definição real da guerra: a destruição de um bem seja já concreto-realizado seja possível.
A violação de uma criança, o formal roubo do salário devido a um trabalhador, o furto de uma carteira, o insulto pronunciado, a mentira dita, a morte evitável e não evitada, isto é, toda a violência é ato de guerra.
Os grandes atos entre grandes massas humanas não são mais do que exemplos maciços destas formas de violência, mas não são dela qualitativamente distinguíveis, apenas quantitativamente.
Enquanto todos os seres humanos, quando em possibilidade de ação violenta, não sentirem, não se transformarem interiormente, numa paixão, que é também um ato, de nojo para com essa mesma violência de que se aproximam como autores, ao modo sentido pela Tenente Enfermeira Lynda perante a inenarrável imundície, obscenidade e imoralidade dos resultados humanos da guerra, não poderá haver paz.
Enquanto todos os impotentes para o amor não forem capazes de abandonar a autocomplacência com a sua impotência trasvestida de ardor guerreiro ou de feroz falsa heroicidade e de encontrar o poder do fazer o bem, não haverá paz.
Enquanto os falsos amantes da paz preferirem a proteção aos tiranos – e são todos os que promovem a guerra – à das suas possíveis e reais vítimas, protegendo os primeiros e sacrificando os últimos, não haverá paz.
A paz, como resultado do bem-comum – é a condição necessária para que possa haver humanidade, não um conjunto de bestas sobrevivendo em humana aparência.
O fim último da guerra – não se trata de uma prosopopeia, mas de uma condição lógica, sem sujeito em sua dinâmica própria – consiste na aniquilação de toda a humanidade: só assim se pode completar e triunfar.
Ora, o triunfo da guerra corresponde, assim, à aniquilação da humanidade. Aniquilada a humanidade, aniquila-se a guerra. O preço a pagar é significativo.
Apostar no progresso pela guerra é apostar na aniquilação da humanidade.
A escolha ainda é possível – talvez não durante muito mais tempo, pois a guerra tende a ganhar aceleração rumo ao seu fim – entre passar a viver segundo o bem-comum ou a aniquilação.
deus – ou Deus – não escolherá por nós.
A grande ironia, relembre-se, é que toda a imundície da guerra pode ser terminada com o triunfo final da guerra, quando já não houver qualquer ser humano capaz de transformar o outro numa obscena carne estraçalhada por outro ser humano.
Que maravilha é a santa Paz, outro nome da divina caridade.
Um ato de bem de cada vez, como Deus: eis a Paz.
N.B.: O texto traduzido é a parte final de uma carta escrita pela Tenente Enfermeira do Exército (USArmy) Lynda van Devanter, que faz parte da obra, “Dear America. Letters home from Vietnam”, edited by Bernard Williams, New York, Pocket Books, 1985, p. 196.