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Léxico do bom viver social

Os bens relacionais

Que os bens e os males mais importantes para nós são as relações interpessoais, sempre a sabedoria popular o soube. Mitos, literatura, histórias e tradições outra coisa não fazem que dizê-lo desde há milénios, falando de riquezas que vieram a tornar-se grandes males por causa de relacionamentos errados e de pobreza material na qual o pouco se multiplica porque partilhado em comunhão. Desde há algumas décadas que começaram a notá-lo também os cientistas sociais e até mesmo alguns economistas (o primeiro foi Benedetto Gui, em 1986), que utilizam a expressão "bens relacionais" para indicar aquele tipo de bens nos quais é a relação entre as pessoas que constitui o bem.
 
Por bem relacional entendem-se hoje muitas coisas. Alguns chamam bens relacionais aos serviços à pessoa cujo valor depende principalmente da qualidade da relação.​ O bem-estar de um serão na pizzaria com os amigos depende certamente da qualidade e do preço da pizza, da cerveja e do local, mas sobretudo (80-90%) deriva da qualidade das relações criadas – tanto que se surge um banal litígio, no final sentir-se-á bem pouco 'bem-estar', ainda que a pizza tenha sido excelente. A satisfação (ou insatisfação) que retiramos da assistência, da cura, e até das consultas médicas, ou da escola, depende muito da qualidade daquelas relações e encontros humanos. Um 'muito' que chega a ser praticamente tudo, quando se trata de crianças, com longas estadias no hospital ou do relacionamento com os nossos pais idosos.

Nos bens relacionais têm decisiva importância as motivações e intenções das pessoas que 'produzem' – bem como das que 'consomem' – estes bens. O 'porquê' é decisivo. Por exemplo, se o consultor ou o segurador me pergunta pelos meus meninos e pela minha família 'porque' se conseguir tornar familiar o clima, o contrato será mais simples (e para ele mais conveniente) e se esta motivação se torna evidente a meus olhos, aquele diálogo pré-comercial não gera qualquer bem relacional (provavelmente, pelo contrário, gerará um 'mal relacional'). O bem relacional, de facto, tem grande valor, que assim resta enquanto não procurarmos atribuir-lhe um preço, trasformá-lo em mercadoria e colocá-lo à venda. Morre, se perde o princípio ativo da gratuidade. Os bens relacionais orientam e condicionam as nossas escolhas, das mais pequenas e quotidianas às grandes e decisivas.

Bastaria pensar, de tanto em tanto, em quanto pesam os bens (e os males) relacionais na qualidade do trabalho que fazemos, na decisão de ficar ou deixar uma empresa. Mudamos para outro bairro e de vez em quando passamos pelo antigo a tomar o pequeno almoço no velho café, porque com a meia de leite e o bolo 'consumimos' também os bens feitos de encontros, piadas ou mesmo comentários satíricos a propósito da equipa de futebol dos amigos. Sem tomar em consideração a necessidade deste tipo de nutrimento, não entenderemos, por exemplo, porque é que tantos idosos e idosas saem de casa várias vezes ao dia para comprar pão, hortaliça e leite: juntamente com estes produtos 'consomem' bens relacionais, e nutrem-se com eles. Se eliminarmos a procura e a necessidade de bens relacionais do horizonte da política (porque antes desapareceu do horizonte dos técnicos e consultores), não conseguiremos entender e viver as nossas cidades, a sua verdadeira pobreza e riqueza, compreender os reais custos e benefícios, por exemplo, das pequenas lojas da cidade. Estes bens relacionais não esgotam, porém, a natureza relacional dos bens.

Cada bem, não apenas os hoje designados relacionais, têm inscrita em si a marca de pessoas e relações humanas que o geraram. Peso, forma e visibilidade desta marca variam de bem para bem, mas nunca desaparecem de todo, para quem sabe e quer vê-los. Vistos por este prisma, todos os bens são relacionais. Pense-se nos produtos de  artesanato; na cultura artesã – ainda bem viva e nunca inteiramente substituida pela cultura industrial – um violino, uma peça de mobiliário, uma arcada podiam ser reconhecidos antes mesmo de verificar a assinatura do autor (frequentemente inexistente, por não ser necessária). Do objeto passava-se facilmente ao sujeito, da criatura ao 'criador'. Mas onde a marca pessoal tem máxima visibilidade, a ponto de não se distinguir já o autor da obra, é na criação artística. Um artista nunca 'aliena' completamente a sua obra ao vendê-la, porque naquela escultura está contida uma parte da sua vida, do seu amor, da sua dor; e assim será para sempre.

Na nossa sociedade de mercado, depois de algumas décadas dominados por produtos de massa anónimos e despersonalizados, verifica-se hoje uma forte e crescente tendência para repersonalizar os bens. Pretende-se fazer emergir os «relacionamentos entre pessoas, escondidos na concha de um relacionamento entre coisas» (Marx, O Capital). Nos mercados, prateleiras de lojas, na web, vemos mercadorias e serviços; mas por baixo deles, invisíveis mas bem reais, estão relações de trabalho, produção, poder, amor e dor humanos. Precisamos de treinar o olhar e de aguçar o ouvido para conseguirmos ouvir vozes e ver rostos não apenas do lado de lá do balcão da fruta ou na caixa de uma loja, mas também atrás de frigoríficos, sapatos, fatos, computadores, porque eles estão lá realmente. Uma bica tomada num café com máquinas de venda automática, muito embora saboreado na companhia de amigos, não é a mesma coisa que se tomava tempos atrás no bar da rua ao lado, mesmo se feito com a mesma mistura de cafés e a mesma máquina. Tem um sabor muito diferente, mas é preciso ter glândulas espirituais e civis para notar esta diferença; glândulas que se estão atrofiando.

Precisamos de aprender a perguntar cada vez mais aos nossos bens (e males), interrogá-los, dialogar com eles. Já não basta, não deverá bastar, que nos falem de qualidade e preço. Queremos também que nos contem histórias de pessoas e de ambiente, que nos falem de justiça, de respeito, de direitos, que nos revelem o que é invisível aos olhos, mas que para muitos de nós está tornando-se o essencial. Algo deste invisível dizem-no já as etiquetas das embalagens e as marcas de qualidade. Mas é pouco demais, porque nos bens existem ainda muitas histórias importantes e decisivas que não conhecemos. As etiquetas não dizem, ou dizem ainda muito pouco, se os salários pagos a trabalhadores de plantações de cacau e de fábricas onde são produzidos blue jeans são equitativos, nem onde se encontra a sede fiscal da empresa; nada dizem sobre se foram dadas a mulheres e mães condições para trabalhar bem; não dizem para que fins são orientados os lucros, nem quantas e que ações de outras firmas se encontram no portafólio da empresa que me vende aquele produto. As fileiras éticas dos produtos são ainda muito curtas, terrivelmente curtas, e terminam onde começam as coisas que contam e que cada vez mais contarão para a democracia.

A atual cultura capitalista está a levar-nos a atribuir crescente importância a calorias, teor de sal e açúcar. Mas não podemos nem devemos esquecer que existem calorias sociais, sais de justiça e outros açúcares em excesso que provocam enfartes, obesidade e diabetes civis e morais. Os bens são símbolos e, como todos os símbolos com a sua presença-ausência, indicam-nos alguma coisa ou alguém presente e vivo algures. Alguém e algo que podemos ignorar, fingir que não existem, negar, esquecer. Mas não cessam de ser vivos e reais. E continuam a falar-nos, a contar-nos histórias, a esperar por nós.

 

Luigino Bruni
In Avvenire
Trad.: José Alberto Bacelar Ferreira, P. António Bacelar
© SNPC | 18.02.14

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