«Para além da dimensão estritamente religiosa, Hélder Câmara foi um intelectual.» A certificação chega de quem conhece. Lucy Pina Neta é a historiadora perita da causa de beatificaçãodo arcebispo de Olinda-Recife, figura inesquecível de «pastor com o cheiro das ovelhas» pelo seu compromisso ao lado dos últimos e em defesa dos pobres no Brasil na segunda metade do século XX. E é precisamente Lucy Pina Neta a traçar, num livro recentemente lançado no Brasil, o perfil cultural do bispo das favelas, seguindo na sua biblioteca os escritos mais consultados e mais amados pelo prelado brasileiro.
«Nascemos dentro de uma escola»: assim se apresentava Câmara, décimo primeiro filho de João Eduardo Torres Câmara Filho, contabilista e crítico teatral, e de Adelaide Pessoa, professora de ensino primário. Já durante os estudos eclesiásticos, Hélder manifestava uma distinta sensibilidade pela literatura, em particular pela brasileira, portuguesa e francesa. Àquele tempo se devem as leituras de autores como Léon Bloy, Charles Péguy e Miguel de Unamuno, como evidencia Lucy Neta em “O dom da leitura. Hélder câmara e suas bibliotecas” (Paulinas Editora, Rio de Janeiro, 2018).
Uma atitude para com a cultura que Câmara mantém inclusive quando – a notícia foi dada pela Rádio Vaticano quando ele estava em Roma, para o concílio Vaticano II – é nomeado, a 14 de março de 1964, para arcebispo de Olinda e Recife. Uma das primeiras tarefas pastorais de D. Hélder foi o ensino da didática geral, da administração escolástica e de psicologia, a que se dedicou a partir de 1941, na Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro. Foi fundamental para ele a leitura de “Psychometric methods”, de Joy Paul Guilford, psicólogo americano conhecido pelos seus estudos sobre a psicometria da inteligência humana. Câmara lê bem cedo (em 1939) esse texto, publicado apenas três anos antes. A Sigmund Freud dedicou a leitura de “Introdução à psicanálise”, em 1941. E a muitos anos antes (1932) deve-se o encontro com Friedrich Nietzsche, através de “Assim falou Zaratustra”.
Na cidade carioca, onde tinha sido nomeado bispo auxiliar a 3 de março de 1952, através da amiga Cecy Cruz, começou a frequentar conhecidos intelectuais, como o célebre escritor Jorge Amado. O encontro com pessoas dedicadas à cultura acompanhou-o toda a vida: «Era habitual reunir no episcopado intelectuais, teólogos, artistas, para trocar opiniões e encontrar possíveis soluções», escreve Lucy Neta, desmentindo a aura de personagem só dedicada ao social que uma certa caricatura inimiga colava a dom Hélder, como gostava de ser chamado.
E se à amizade entre Câmara e Paulo VI o teólogo brasileiro Ivanir Antônio Rampon já tinha dedicado o livro Paulo VI e Dom Hélder Câmara. Exemplo de uma amizade espiritual (Paulinas), Lucy Pina Neta tem a possibilidade, pesquisando as cartas e a recolha livreira de Câmara, de reconstruir a herança fecunda que o Vaticano II deixou no pensamento e na ação do “bispinho”.
Durante o período conciliar, D. Hélder aproximou-se de alguns dos teólogos que estavam a marcar a assembleia conciliar, como o dominicano Yves Congar e o jesuíta Henri de Lubac. Durante a última sessão dialoga com Jacques Maritain e Jean Guitton, cujo livro com Montini será uma das leituras mais frequentes do “bispo vermelho”. São desses anos a leitura de alguns textos significativos: “Manifesto para uma civilização solidária”, do dominicano Joseph Lebret, “A unidade, esperança de vida”, do fundador da comunidade de Taizé, Ir. Roger, o ensaio “Escalões para uma teologia do laicado”, de Congar, e “Jesus”, do já citado Guitton. Deste último será ávido leitor dos “Diálogos com Paulo VI”, que em 1969 lerá e anotará intensamente.
Hélder Câmara leu também autores italianos, com as reflexões de Giorgio La Pira, “Lázaro à tua porta”, e de Romano Guardini, “O universo religioso de Dostoievsky”. Não desdenhava a teologia americana, como testemunha a leitura de “Cristo e cultura”, de Richard Niebuhr, e “A festa dos foliões” e “Que a serpente não decida por nós”, de Harvey Cox. Os autores de casa, naturalmente, não eram descurados: são frequentes os textos de Leonardo Boff e Ruben Alves.
A reviravolta internacional na notoriedade do de D. Hélder ocorre em 1970, quando um discurso público em Paris consagra o bispo das favelas como uma das vozes proféticas da Igreja sul-americana, comprometida na luta pelos direitos humanos no difícil contexto político do tempo, marcado pelas ditaduras militares. Essa notoriedade torna-se, muitas vezes, uma espécie de cruz supletiva para D. Câmara, apelidado de “bispo vermelho” pelas suas fortes tomadas de posição sobre as injustiças (sobre estas acusações, documentou o ensaio de Rampon, eram frequentes as piadas sobre Paulo VI e o prelado brasileiro).
Para contradizer esta posição, Lucy Pina Neta estuda uma missiva de Câmara, a carta circular número 33 de 1966: «Nos minutos livres leio “O marxismo”, do cónego Juvenal Arduini. Comecei pelo último capítulo: a conclusão fala da superação positiva do marxismo. Muitas pessoas que se pronunciam contra o comunismo marxista sem nunca terem lido nada sobre Marx adquiririam muito da leitura, por exemplo, dos capítulos sobre a alienação e as suas origens, sobre o valor acrescentado ou sobre a dialética real ou o humanismo ateu. O padre Arduini tem o dom de expor de maneira objetiva e honesta, tornando compreensíveis as noções difíceis».
Também na frente do compromisso pela paz, Câmara lê de mestres qualificados: são intensas as leituras de Gandhi e Thomas Merton; frequentes as visitas de Hildegard Goss-Mayr, mulher do ativista Jean Goss. Emblemáticas as palavras de admiração por “A força de amar”, de Martin Luther King: «Tenho já uma exata medida da palavra deste homem! Que alma cândida! Confirmo já a intenção de o convidar para aqui!».