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6.ª Jornada da Pastoral da Cultura

Reinventar a Igualdade

Na perspectiva cristã, não tardou muito a ser compreendida a primeira e última radicação da igualdade, ou seja, o critério divino que se revelou na palavra e na atitude de Cristo. Por isto mesmo as comunidades cristãs, cuja substância consiste na herança e perpetuação dessas mesmas palavra e atitude, devem oferecer à sociedade em geral o ensaio credível de tal convicção.

Intervenção do presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, D. Manuel Clemente, na 6.ª Jornada da Pastoral da Cultura, realizada em Fátima a 25 de Junho.

 

 

 

1. Não sei ou não me lembro de como surgiu este título de “reinventar a igualdade”, mas quando um dia peguei nele acabei por me surpreender e, depois, concordar.
Sobre a igualdade, como reivindicação e sentimento, todos estamos de acordo agora. Mas sobre o que ela seja ou deva ser, talvez hesitemos. Seja como for, será nova e a reinventar.

Mas caminhemos devagar. Disse há pouco que todos estamos de acordo “agora”. De facto, se aqui estivéssemos há um século, não sei se estaríamos assim tão de acordo. Ainda menos há duzentos, trezentos, ou mais anos para trás.

Até ao liberalismo e à república, a sociedade sentia-se e entendia-se como desigualdade concorde, idealmente concorde. Suseranos e vassalos, reis e súbditos, amos e criados, mestres e aprendizes, na acepção vertical; ou mesteiral deste ou daquele ofício, regular desta ou daquela ordem, vilão desta ou daquela vila, na acepção horizontal das coisas. Sempre desigual e idealmente concorde em sociedades “corporativas”, com órgãos distintos do mesmo “corpo”, que só conjugadamente funcionaria.

Na simbolização religiosa e cristã, bem na esteira da Igreja-Corpo, apresentada por São Paulo (cf. 1 Cor 12, 12 ss), tudo assentava na profética dignidade baptismal, como se convivia à medida da “conversão” propriamente dita, ou plastificava na procissão do “Corpo de Deus”, ordem por ordem, lugar por lugar, mas finalmente um todo.

 

2. Tudo próprio, aliás, de sociedades imediatamente identificadas e de real vizinhança. Em meios pequenos – mesmo os “grandes” seriam pequenos hoje – e onde houvesse alguma sensibilidade humana e cristã, o recorte de cada um/a resistia às abstracções formais ou sociais e classistas.

Como nas dezenas de figuras dos painéis de Nuno Gonçalves (meados do século XV), há certamente nobres, mas são aqueles nobres e cada um deles, identificáveis; e o mesmo se diga dos clérigos e plebeus. Cada terra tinha os seus ricos e os seus pobres, como os seus homens e mulheres, um a um, uma a uma, história a história. Até os santos tinham rosto e simbolização reconhecíveis.

Depois deixou de ser assim. Com as grandes concentrações urbanas da primeira industrialização, com as maiores deslocações de tanta gente, fomo-nos massificando e, neste sentido, desfigurando, até ao individualismo contemporâneo, demasiadamente abstracto.

Na verdade, a própria noção de indivíduo reduz-nos à mínima existência e à quase despersonalização. Não é por acaso que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa junta, entre outras, as seguintes definições de “indivíduo”: “Qualquer ser que não se pode dividir sem deixar de ser o que é: ser indiviso. […] Alguém que não se quer ou não se sabe nomear ou de quem se fala com desprezo ou desdém”. De “pessoa” diz coisas diferentes, essencialmente diferentes, como estas: “Ser humano consciente de si mesmo, livre e responsável pelos seus actos. […] O ser humano enquanto aberto aos seus semelhantes…”.

Isto para dizermos que na massificação não há lugar para a igualdade, que supõe relação, mas apenas para o nivelamento, formal e irresponsável. Entre anónimos, pode não se aceitar a disparidade, mas não cresce a reciprocidade. A indiferença, como a indistinção não são o caldo de cultura da igualdade concebida e procurada na relação.

 

3. Não aprendemos tudo duma vez, muito pelo contrário. Da proximidade imediata das sociedades antigas, passámos à contiguidade forçada das aglomerações contemporâneas. Aglomerações não isentas de situações insuportáveis para muitos e muitíssimos, que tocaram profundamente o coração e a mente dalguns. Daqui a sucessão das propostas de reforma e até revolução social, oscilando entre um optimismo pouco comprovado para a resolução espontânea da questão social, pelo simples jogo das iniciativas individuais, e a resolução do todo pelo todo, abstracta e colectivamente tomado. No primeiro caso, a igualdade seria dos melhores que sobrassem; no segundo resultaria da indiferenciação forçada.

Do século XVII para o XIX oscilámos contraditoriamente entre a reivindicação da igualdade inter-individual e burguesa e a luta pela igualitarização social e colectivista. Do século XX para o XXI tentamos a igualdade inter-pessoal, radicada na dignidade essencial de cada ser humano, que, exactamente por ser pessoa, tanto é distinto como é solidário. Por isso a igualdade social terá de ser necessariamente subsidiária, ninguém substituindo ninguém; como também solidária, ninguém dispensando ninguém.

 

4. Na perspectiva cristã, não tardou muito a ser compreendida a primeira e última radicação da igualdade, ou seja, o critério divino que se revelou na palavra e na atitude de Cristo. Por isto mesmo as comunidades cristãs, cuja substância consiste na herança e perpetuação dessas mesmas palavra e atitude, devem oferecer à sociedade em geral o ensaio credível de tal convicção.

Mais prático e pedagógico não se poderia ser do que neste trecho do Novo Testamento: “Meus irmãos, não tenteis conciliar a fé em Nosso Senhor Jesus Cristo glorioso com a acepção de pessoas. Suponhamos que entre na vossa assembleia um homem com anéis de ouro e bem trajado, e entre também um pobre muito mal vestido, e, dirigindo-vos ao que está magnificamente vestido, lhe dizeis: ‘Senta-te tu aqui, num bom lugar’, e dizeis ao pobre: ‘Tu fica aí de pé’: ou ‘Senta-te no chão abaixo do meu estrado.’ Não é verdade que, então, fazeis distinções entre vós mesmos e julgais com critérios perversos? […] Se cumpris a lei do Reino, de acordo com a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo, procedeis bem; mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis um pecado e a lei condena-vos como transgressores” (Tg 2, 1 ss).

Mais concreto e radical seria impossível. Radical, porque busca na própria actuação divina, revelada em Cristo, a razão mais inquestionável para a consideração igualitária de todos e de cada um, fosse qual fosse na escala social. Concreto, porque o exemplo assim o era, como concreta devia ser a atitude, na comunidade cristã e da comunidade para a sociedade, exemplarmente.

Neste sentido escreveu Gerd Theissen: “Tiago não apela apenas às personagens de alto nível social para renunciarem ao seu estatuto. […] Tiago obriga também os inferiores a não concederem imediatamente privilégios aos superiores e a não discriminarem os inferiores. […] A hierarquia do mundo exterior não é aceite e a renúncia ao estatuto não é exigida apenas aos cristãos, mas também às pessoas de fora – ainda que apenas quando aparecem na comunidade como cristãos potenciais. […]

Fundamentalmente, a exigência de igualdade não se limita às relações internas. É esta a chave para compreendermos que igualdade e universalidade estão ligadas mais estritamente na Epístola de Tiago do que noutros escritos do Novo Testamento, Trata-se dum momento forte da ética cristã primitiva” (1).

Trata-se também, podemos concluir, duma primeiríssima demonstração das consequências do Evangelho na sociedade e na cultura: para “reinventar a igualdade” nas circunstâncias que nos tocam.

 

(1) THEISSEN, Gerd – Amour du prochain et égalité. Jc 2/1-13: um moment fort de l’éthique chrétienne primitive. Études Théologiques & Religieuses. 76 (2001/3) 345.346.

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
Fátima, VI Jornada da Pastoral da Cultura, 25 de Junho de 2010
© SNPC | 28.06.10

Dom Manuel Clemente
António Monteiro / SNPC
































































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