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Pena de morte, ou da tirania do irreversível

Para que se possa minimamente perceber, em termos fundamentais, o que está em causa quando se fala em «pena de morte», há que ter em conta que, quando tal possibilidade se invoca, se está imediata e inapelavelmente em âmbito ontológico – onto-antropológico –, é ao nível do ser que a questão se põe e é ao nível do ser que importa e que as suas consequências são fundamentalmente ponderosas.

Não é, pois, nos âmbitos jurídico, ético, político, psicológico, sociológico, religioso, teológico, ou outros, vários, que se situa o que há de fundamental quando está em causa a pena de morte.

Não é, sequer, o caráter «penal» que é determinante, mas isso sobre que tal penalidade se exerce, isto é, a vida humana. Ora, o que há de mais importante na vida humana, que coincide com o seu absoluto próprio e irredutível, é a sua dimensão ontológica, que é indistinguível do ser de quem está vivo.

Assim, quem pode ser alvo de pena de morte, não só pode ter, mas, se tal possibilidade se concretizar, tem necessariamente a sua vida posta em causa, o seu ser posto em causa, o absoluto de seu ser posto em causa. Ora, nenhuma pessoa é, no campo das possibilidades domináveis pela humanidade, mais do que a vida que é. Mundanamente, é assim e apenas assim. Ainda mundanamente, se alguém duvidar de tal, experimente eliminar essa mesma sua vida em que tal dúvida surgiu.

Este aparente convite ao suicídio, que é, precisamente, o contrário, demonstra, por absurdo, o absoluto da importância ontológica que assume, para o ser humano, para cada um e para todos, todos nós, a sua vida, a vida de todos: o único verdadeiro bem que possuímos, melhor, que somos.

Assente este primeiro ponto, que impede de se cair nas habituais tolices superficiais que proliferam quando deste assunto se trata, podemos, agora, refletir seriamente sobre o que está em causa na pena de morte.

Não é preciso pertencer-se a uma qualquer dita religião superior para se perceber a gravidade ontológica do que constitui cada possível atentado contra a vida humana; basta mesmo não se ser inapelavelmente estúpido, de um ponto de vista meramente antropológico e laico.

Quem não percebe que ao pôr a vida do outro como algo de antropologicamente não-sagrado está, em esse mesmo ato, a pôr a sua própria vida como algo de também antropologicamente não sagrado: se a vida do outro pode ser posta em causa por mim, por que razão não pode o outro fazer o mesmo relativamente a mim?

Que tem ou que é a minha vida mais ou menos do que a vida do outro?

Qual é o padrão de comparação? Que absoluto constitui? E quem o constituiu como tal absoluto? Fui eu próprio, autoconstituído em senhor da vida e da morte?; autoconstituído em deus dos seres humanos, mesmo que me autointitule como «sem-deus»? Mas quem é este eu que assim se arroga o poder discricionário de estabelecer o valor ontológico da vida de alguém, no limite, de todos os seres humanos?

Não será, antes, este o protótipo da besta-humana, como essa que usurpa um poder que a ninguém compete, o de definir o que é humanamente digno de viver e indigno de viver, cuja morte é, assim, necessitada? Pensamos que sim, tendo tal besta paradigmática recebido concretização na figura histórica de Hitler (embora outras o tenham secundado, como Estaline, mas sem a mesma negativa grandeza cosmo-recriadora).

Quando alguém, primeiro, deseja e, depois, quer a morte de alguém não está a incarnar este mesmo paradigma de bestialidade? Simbolicamente, não cai a humanidade numa bestialidade sem retorno autónomo possível, quando Caim mata Abel, aplicando-lhe a “pena” de morte que anteriormente decidira?

Não é este Caim símbolo e paradigma de “juiz, júri e carrasco”?; mas não é ele, também, o legislador da lei que lhe interessa, independentemente da lei que interessa à humanidade como um todo?

Não tem Caim toda a legitimidade de que necessita, precisamente a legitimidade que possui facticamente esse que é capaz de matar e, a partir desta capacidade, pode impor sobre esses a quem pode matar tudo o que entender por bem? Não é esta a figura do tirano?

Que legitimidade pode ter a lei que determina a morte de um ser humano, ato de que não há retorno possível, sendo todas as formas de possível compensação, assim, tornadas anedóticas, mesmo, antropologicamente ofensivas e blasfemas, ao supor ou impor que se possa avaliar quer a vida de alguém quer o sofrimento de alguém em termos outros que não os absolutos do ato da vida e do ato do sofrimento.

Pode vender-se a vida? Pode, mesmo, para além da torpe ilusão dos cobardes? Pode prostituir-se o sofrimento, para além da miséria dos que, deste modo, se escravizam?

Posta de parte a dimensão corrente, profundamente anedótica, da questão jurídica relativa à pena de morte, podemos avançar para a seriedade da questão fundamental, que não é de ordem jurídica. Ora, a questão diz respeito à consideração do que há de absolutamente diferente entre vida e morte.

Não é possível honestamente – desonestamente, pode fazer-se o que se puder e quiser – estabelecer uma diferença absoluta entre ser humano – pessoa – e esse ser humano como ser vivo que é.

Antes de os gâmetas, de que todo o seu processo quer como ser vivo quer como ser vivo humano depende, se unirem, não há ser humano – pessoa – algum; apenas matéria química viva biologicamente humana – como as fezes humanas também são: não são caprinas ou porcinas, por exemplo –, mas isso não é um ser humano.

O ser humano começa sempre que o património genético completo que o constitui se constitui: qualquer intervenção que contra tal atente constitui a execução de um decreto de pena de morte, independentemente da sua formalização, mais ou menos clara, mais ou menos legal – lembremos que as “leis de Nuremberga”, de Hitler, foram e são formalmente leis, o que retira qualquer tipo de possível «sacralidade» a qualquer lei feita, precisamente depois de ninguém ter anulado aquelas como tais.

Neste nosso mundo, o ser humano termina quando a morte o atinge, isto é, sem rodeios: quando morre. O absoluto da diferença entre estar vivo e já não estar vivo – dado que não se pode dizer com sentido «estar morto», pois já não há isso que possa «estar» coisa alguma – tem como resultado algo de puramente monumental, que é o cadáver. O cadáver não é, evidentemente, uma pessoa; mas, por mais duro que seja, também já não é propriamente humano: trata-se apenas de aquilo a que se chama, e bem, de «restos mortais de uma pessoa»; por terem sido de uma pessoa, lhe prestamos a homenagem que achamos por bem.

Mas, ali, naquele pedaço de matéria inerte, de restos materiais de origem medial biológica, mas longínqua puramente material, já não há pessoa alguma. Terrível evidência, que tem de ser encarada de frente e sem cobardia.

Ora, é esta redução irreversível de pessoa a cadáver que a pena de morte se propõe fazer.

Quem assim quer proceder quer, quer mesmo e não se invoquem erros ou ilusões, transformar alguém em ninguém; quer aniquilar a pessoa.

Como é evidente, qualquer pessoa que possa agir materialmente pode matar alguém. Assim, qualquer um de nós pode matar alguém. Mas a questão não é se pode, mas se deve.

O termo «dever» remete não para uma condição de necessidade, mas para uma condição de normalidade, de norma em ato: sem normas, não há dever.

A condição de necessidade tem como tradução prática, como ato possível o ato necessário que, único, permite que a pessoa em tal estado possa guardar o seu único bem, a vida: assim, o soldado em estado de necessidade pode não matar e é morto; mas, para poder viver tem de matar. Não deve matar: matar para um soldado não é um dever, é uma necessidade, que ele pode negar, morrendo em nome desse ato de abnegação.

Quando se diz a um soldado que deve matar, está-se a dizer que ele tem a obrigação não de se defender da morte, mas de servir interesses que dele se servem para benefício próprio: é este serviço perverso que é mentido ao soldado para o levar a matar, sem necessidade: «Hans, vai ali matar aqueles judeus que ameaçam o Reich.» Que necessidade há de Hans ir matar os judeus?

Mas que necessidade há de alguém violar e matar uma criança? Esta, em estado de necessidade, se tiver de matar para evitar perder a vida, por que não o há de fazer?

No comum da ação que por aí se vai operando, parece preferirmos a morte e aviltamento dos inocentes, ao não deixarmos que se defendam convenientemente.

É esta mesma perversidade que parece manifestar-se quando, já depois de anulada a perigosidade do criminoso, já depois de estar tornado ineficaz, reivindicarmos, apenas, o nosso direito a algo que não é mais do que uma vingança.

No entanto, a vingança, até pelo modo como é exercida com desvantagem da potencial vítima – a vingança transforma sempre o criminoso em vítima, perceba-se tal ou não –, mais não é do que mais um ato em que alguém mata alguém sem estar em estado de necessidade.

Ora, não correspondendo a um estado de necessidade, imediatamente se estabelece como mais um assassinato.

De nada interessa que este novo assassinato tenha autorização legal, qualquer seja esta.

Lembremo-nos, laicamente, do crime cívico que foi a legalíssima morte de Sócrates de Atenas, legalmente assassinado, por pena de morte, apenas porque pensava a estrutura ontológica da cidade de forma diferente daquela da oligarquia então no poder. Esta oligarquia determinou em assembleia democrática – segundo a constituição vigente – a morte de Sócrates. Cumpriu na perfeição o seu direito. No entanto, matou o melhor homem que a cidade tinha.

Com a morte de Sócrates, inocente a um nível trans-político, surge a questão dos inocentes que são mortos legalmente por pena de morte. Tal constitui um crime trans-jurídico que transporta consigo o germe político-cancerígeno da morte da cidade, pois, ao eliminar um inocente, a cidade nega o fim para que se constitui, precisamente o bem de todos, que inclui como ápice e coroamento o bem dos que nenhum mal fizeram.

Bastaria o argumento da possibilidade da eventual morte de um inocente para que a irreversível morte infligida por pena legal nunca existisse.

Mas tal necessitaria de uma humanidade digna do nome, sem medo, honesta, minimamente virtuosa, que escolhesse como governantes alguns dos seus, assim semelhantes.

A semelhança de escolha atual, desde sempre, em muito pouco diz respeito à virtude efetiva, antes à concupiscência pelo poder. E esta é a maior assassina que existe, passe a prosopopeia, que não isenta qualquer de nós.

A abolição da pena de morte e da morte como forma de pena comum humana passa necessariamente pela metamorfose das pessoas de predadores a curadores, de reais inimigos, a reais amigos.

Esperemos.



 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 12.01.2018 | Atualizado em 10.10.2023

 

 
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