«Aos teus servos são queridas as pedras de Sião» (Salmo 102, 15). Esta profissão de amor do antigo salmista poderia ser o próprio moto da tradição cristã, que ao espaço sagrado reservou sempre um relevo extraordinário, a partir da “pedra” do Santo Sepulcro, sinal da ressurreição de Cristo, em torno à qual surgiu um dos templos emblemáticos de todo o cristianismo. Entre outros aspetos, é curioso que simbolicamente as três religiões monoteístas se ancorem a Jerusalém à volta de três pedras sagradas, o Muro Ocidental (dito popularmente “das Lamentações”), sinal do templo salomónico para os judeus, a rocha da ascensão ao céu de Maomé na mesquita de Omar para o islão, e, precisamente, a pedra levantada do Santo Sepulcro para o cristianismo.
Certo é que sem a espiritualidade e a liturgia cristãs, a história da arquitetura teria sido bem mais pobre: pensemos apenas na nitidez das basílicas paleocristãs, no requinte das bizantinas, na monumentalidade do românico, na mística do gótico, na luz solar das igrejas renascentistas, na suntuosidade das barrocas, na harmonia dos edifícios sagrados setecentistas, no neoclassicismo do século XIX, para chegar à sóbria pureza de algumas realizações contemporâneas (…).
Há, portanto, no cristianismo uma celebração constante do espaço como sede aberta ao divino, partindo precisamente desse templo supremo que é o cosmo.
Um grande historiador da teologia, Marie-Dominique Chenu (1895-1990), lamentava-se no termo da sua vida por ter reservado muito pouco espaço às artes quer literárias quer figurativas quer arquitetónicas na sua história do pensamento religioso, porque «elas não são somente ilustrações estéticas, mas verdadeiros sujeitos teológicos». Do anonimato a que se relegavam os grandes construtores de catedrais bastaria apenas fazer emergir, a título exemplificativo, um génio arquitetónico e artístico como o abade Suger de Saint-Denis (século XIII).
Dito isto, há todavia na conceção cristã uma componente muito importante que – como se dizia – desloca o centro de gravidade teológico do espaço para o tempo. E é sobre este aspeto que fixaremos agora a nossa atenção. Na última página do Novo Testamento, quando João o Vidente encara a planimetria da nova Jerusalém da perfeição e da plenitude, encontra-se perante um dado à primeira vista desconcertante: «Templo, não vi nenhum na cidade; pois o senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu templo» (Apocalipse 21, 22). Entre Deus e o ser humano deixou de ser necessária qualquer mediação espacial; o encontro passa a ser entre pessoas, cruza-se a vida divina com a humana de maneira direta.
Desta descoberta poderemos remontar a uma sequência de cenas igualmente inesperadas. Imaginemos que percorremos este fio temporal, apanhando-o na ponta extrema oposta. David decide erigir um templo na capital recém-construída, Jerusalém, de forma a ter também Deus como cidadão no seu reino. Mas eis a surpreendente resposta oracular negativa emitida pelo profeta Natã: o rei não construirá nenhuma “casa” para Deus, mas será o Senhor a dar uma “casa” a David: «O Senhor faz hoje saber que será Ele próprio quem edificará uma casa para ti» (II Samuel 7, 11). Em hebraico joga-se com a ambivalência do termo “bayit”, “casa”, e “estirpe”.
Deus, portanto, ao espaço sagrado de uma casa-templo prefere a presença numa casa-estirpe, ou seja, na história de um povo, na dinastia davídica que se colorirá de tonalidades messiânicas. É verdade que o espaço não é dessacralizado. O filho de David, Salomão, erguerá um templo que a Bíblia descreve com admirada ênfase. Porém, quando ele está a pronunciar a sua oração de consagração, teve necessariamente de interrogar-se deste modo: «Será que Deus poderia mesmo habitar sobre a terra? Pois se nem os céus nem os céus dos céus te conseguem conter! Quanto menos este templo que eu edifiquei?» (II Livro dos Reis, 8, 27). O templo, então, é somente o âmbito de um encontro pessoal e vital (não é por acaso que se fala na Bíblia de «tenda do encontro») que vê Deus inclinar-se «do lugar da sua morada, do céu» da sua transcendência em direção ao povo que acorre ao santuário de Sião com a realidade da sua história sofrida, da qual se elencam os vários dramas.
Os profetas chegarão ao ponto de minar os fundamentos religiosos do templo e do seu culto sempre que ele se reduza a ser apenas um espaço mágico-sacral, dissociado da vida da praça cívica, ou seja, do compromisso ético-existencial, e confiado apenas a uma presença meramente e hipocritamente ritual. Basta unicamente, entre os muitos passos proféticos de andamento análogo, ler este parágrafo do profeta Amós (século VIII antes da era cristã): «Eu detesto e rejeito as vossas festas;e não sinto nenhum gosto nas vossas assembleias. Se me ofereceis holocaustos e oblações, não as aceito, nem ponho os meus olhos nos sacrifícios das vossas vítimas gordas. Afastai de mim o vozear dos vossos cânticos, não quero ouvir mais a música das vossas harpas. Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca» (5, 21-24).
Mas entremos no cristianismo de modo direto. Cristo, como todo o bom judeu, ama o templo de Jerusalém. Não hesita em empunhar um chicote e golpear os mercadores que o profanavam com os seus comércios, frequenta as suas liturgias durante as várias solenidades, como farão também os seus discípulos, que se reservarão até um espaço próprio na área do denominado “Pórtico de Salomão”. No entanto o mesmo Cristo, naquele meio-dia ensolarado no poço de Jacob, diante do monte Garizim, lugar sagrado da comunidade dos samaritanos, não teme dizer à mulher que está a tirar água: «Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas chega a hora - e é já - em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade» (João 4, 21-24). Haverá uma ulterior reviravolta que entronizará a presença divina na própria “carne” da humanidade através da pessoa de Cristo, como declara o célebre prólogo do Evangelho de João: «O Verbo fez-se carne e pôs a sua tenda no meio de nós» (1, 14), com evidente referência à “tenda” do templo de Sião. Entre outros aspetos, o verbo grego “eskénosen”, “põe a tenda”, segue os passos dos radicais s-k-n do vocábulo hebraico com que se definia a “Presença” divina no templo de Sião, “Shekinah”. Jesus será ainda mais explícito: «Destruí este templo e em três dias eu o farei ressurgir». E o evangelista João anota: «Ele falava do templo do seu corpo» (2, 19-21).
Paulo irá mais além, e, escrevendo aos cristãos de Corinto, afirmará: «Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, porque o recebestes de Deus, e que vós já não vos pertenceis? Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo» (I, 6, 19-20). Um templo de pedras vivas, portanto, como escreverá S. Pedro, «empenhai-vos na construção de um edifício espiritual» (I, 2, 5), um santuário não extrínseco, material e espacial, antes existencial, um templo no tempo. O templo arquitetónico será, portanto, sempre necessário, mas deverá ter em si uma função de símbolo: já não será um elemento sacral intangível e mágico, mas somente o sinal necessário de uma presença divina na história e na vida da humanidade. O templo, portanto, não exclui ou exorciza a praça da vida civil, mas fecunda-a, transfigura, purifica a existência, atribuindo-lhe um sentido ulterior e transcendente. Por isso, uma vez alcançada a plenitude da comunhão entre divino e humano, o templo na Jerusalém celeste, a cidade da esperança, dissolver-se-á, e «Deus será tudo em todos» (1 Coríntios 15, 28).
Terminamos a nossa reflexão com três testemunhos. O primeiro retoma os graus do discurso proferido até agora. É uma cantiga judaica cabalística medieval que recorda as várias passagens para encontrar o lugar onde se encontra verdadeiramente Deus. Eis o refrão em hebraico, refrão assonante que se repete a cada estrofe: “Hu' hammaqôm shel-maqôm / we'en hammaqôm meqomô”. Com um jogo de palavras e uma intuição fulgurante diz-se: «Ele, Deus, é o Lugar de cada lugar, / contudo este Lugar não tem lugar».
O segundo testemunho está ligado à figura de S. Francisco e é deduzida do capítulo 67 da “Vida segunda” do franciscano Tomás de Celão. Um frade diz a Francisco: «Já não temos dinheiro para os pobres». Francisco responde: «Despoja o altar da Virgem e vende o mobiliário, se não puderes satisfazer de outra maneira as exigências de quem tem necessidade». E logo depois acrescenta: «Acredita-me, à Virgem será mais apreciado que seja observado o evangelho do seu Filho e despido o seu altar, do que ver o altar ornamentado e desprezado o Filho no filho do homem». Devemos, portanto, despojar-nos do templo e da sua beleza? Não, porque Francisco está convencido de que Deus nos oferecerá de novo o templo, com todos os ornamentos: «O Senhor enviará quem possa restituir à Mãe quanto nos deu por empréstimo para a Igreja».
A terceira e última consideração é-nos oferecida pela espiritualidade ortodoxa. Um conhecido teólogo leigo do século XX que viveu em Paris, Pavel Evdokimov, declarava que entre a praça e o templo não devia haver a porta bloqueada, mas um umbral aberto no qual as espirais do incenso, os cantos, as orações dos fiéis e o reluzir das lâmpadas se refletem também na praça onde ressoam o riso e a lágrima, e até a blasfémia e o grito de desespero do infeliz. Com efeito, o vento do Espírito de Deus deve correr entre o espaço sagrado e a praça onde se desenrola a atividade humana. Encontra-se, assim, a alma autêntica e profunda da Incarnação, que cruza em si espaço e infinito, história e eternidade, contingente e absoluto.