O que tem a ver a fé com o alfabeto dos afetos? O facto é que a fé, a verdadeira, tem a ver com tudo: com os afetos, com o pensamento, com a vida. No período tão estranho que vivemos, a impossibilidade para muitos de frequentar os sacramentos, e a missa em particular, têm colocado os católicos perante uma situação inédita, que suscita várias interrogações. Na discussão que se abriu em muitos média, fez-me refletir de maneira particular um comentário que li no Facebook; uma pessoa que conheço, distante da fé mas não hostil de modo preconceituoso, escreveu: porque é que os cristãos não podem renunciar por um pouco aos seus ritos, em vista da saúde de todos e do bem comum?
Parece-me que esta pergunta exprime muito bem a subvalorização generalizada daquilo que os crentes colocam, ao contrário, como uma questão crucial, e que é a consequência lógica daquele pensamento: que a Eucaristia seja para nós “um rito”. Um rito certamente importante, respeitável, dotado de um forte valor simbólico e identitário, mas como todos os ritos decerto não indispensável em tempo de crise, porque a vida concreta vem antes de qualquer rito, ainda que seja importante. Mas, realmente, o que nos faltou – e para muitos continua a faltar – é um rito? Um rito belíssimo, profundo, pleno de significados simbólicos, rico de valor identitário? É disto que se trata?
Creio que responder a esta pergunta é importante, porque a questão põe à luz o quão profunda e espalhada é hoje a incompreensão sobre o significado verdadeiro da fé. Nós temos de responder: não, não se trata só de um rito, nem da simples memória de um acontecimento antigo, porque no Sacramento exprimimos a certeza de encontrar Alguém. A fé, para nós, é acreditar que na Eucaristia encontramos uma Pessoa viva, concreta e tangível: a Pessoa do Ressuscitado. A fé diz-nos que não se trata de um encontro simbólico, mas de um encontro que tem a mesma consistência e realidade de um abraço, o encontro com uma Pessoa amada e que nos ama. Nós acreditamos numa Presença concreta, e vamos com alegria encontrar concretamente (não simbolicamente) Alguém que amamos.
Mas se acreditamos e afirmamos isto abertamente e com simplicidade, torna-se evidente também para nós algo que, habitualmente, não conseguimos percecionar em todo o seu verdadeiro alcance, e que muitas vezes não consideramos na sua profundidade, com todas as consequências que poderia comportar: que a fé em Cristo crucificado, ressuscitado e sempre presente representa, para todos os efeitos, um autêntico salto lógico, um salto para uma outra dimensão, alguma coisa de inacreditável e de verdadeiramente inaudito. Qualquer coisa que roça a loucura, mas que pode mudar realmente a vida.
Esta foi a maravilha e a dureza da mensagem cristã desde as origens: a entrada concreta, física, de Deus no nosso mundo. A presença de Deus, com um corpo que toca, acaricia, ama, sofre, morre. Um Deus morto e ressuscitado que não está algures, mas permanece connosco e continua a tocar, acariciar, amar; continua a sofrer com quem sofre e a morrer com quem morre. A nossa religião coloca no centro a concretude do corpo, e dá valor à concretude do gesto. O cristão não vive de símbolos, mas de uma realidade mais verdadeira e real do que qualquer outra realidade contingente. Acreditamos nisto verdadeiramente?
A impossibilidade de participar na Eucaristia talvez não lese apenas o sacrossanto princípio da nossa liberdade de culto, mas constitui uma ferida capaz também de abrir uma estrada. Uma ferida que pode transformar-se numa ocasião preciosa: a de sair de uma fé domesticada, que perdeu a sua maravilha e a sua dureza, para redescobrir o facto de existir ligada à insensatez, ao escândalo, à alegria e à possibilidade. Uma fé que nos permite ter o olhar livre de quem não precisa de se entrincheirar ou de se defender, mas vive cada circunstância como uma nova oportunidade: a de participar dia após dia no eterno criar de Deus.