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Receita para se fazer pão

Fome, muita fome. De afeto, de alegria, de paz, de emoções, de amor, de dinheiro, de boa comida, de férias, de normalidade, de amizade, de luz, de tudo. Somos definidos pelos apetites, pelo desejo. Somos aquilo que desejamos.

O nosso mundo, muitas vezes, engana, engana-nos, fazendo-nos crer que a nossa fome se aplacará com pouco. Basta adquirir aquilo que nos é proposto. E há pessoas que passam a vida a atormentar-se na inveja porque não têm fama, "likes", luxos, férias em lugares exóticos.

Entendamo-nos: é melhor uma vida relaxada e sem ansiedades do que uma feita de medos e misérias, óbvio. Mas só o conseguiremos se levantarmos o olhar, se passarmos para um outro nível.

Porque é Deus que colocou no nosso coração o desejo. Para começar uma magnífica caça ao tesouro. Para encontrar a pérola preciosa da sua presença. Para nos tornarmos buscadores e mendigos de luz. Temos fome, muita.

 

Na Babilónia

Isaías promete ao povo no exilio um pão gratuito, que saciará todo o coração (Isaías 55,1-3). Na realidade, o povo, no exílio há mais de cinquenta anos, tem a barriga cheia. Integrou-se, comprou casas na Babilónia, ninguém pensa seriamente em ir para uma terra que nunca viu. Poucos regressarão, após o edito de libertação de Dario, e não encontrarão à sua espera pão e mel, mas dificuldades e ódio da parte de quem ocupou as suas casas. Mas encontrarão o verdadeiro rosto de Deus.

Também nós, às vezes, contentamo-nos com pequenas e temporárias saciedades que a vida nos oferece. Pensamos que compreendemos e fazemos tudo para que consigamos realizar um sonho.

Quanto é difícil suscitar fome em quem tem a barriga cheia! A fome de sentido, de felicidade, de paz a quem se contenta com as pequenas (legítimas) alegrias que a vida nos oferece.

O primeiro passo para a conversão é a consciência do desejo de felicidade profunda que trazemos no coração. O primeiro passo para Deus é a convicção de que o desejo infinito que trazemos em nós só pode ser preenchido pelo infinito.

 

Multidão

Muita gente se reúne em torno a Jesus (Mateus 14,13-21). Tem compaixão, Jesus, ama o povo, sabe de que precisa. Não está distraído o nosso Deus, não está sobre as nuvens a governar as formigas. Todavia, diante da multidão, Jesus não age, mas pede aos seus para agir.

Com muito bom senso, os discípulos sugerem-lhe que ignore o problema: cada um que se arranje. Não conseguimos fazê-lo. Agora não. Não neste momento que nos descobrimos enfraquecidos e frágeis, amedrontados e agressivos.

Não agora que a Igreja mostra as suas rugas, as suas fadigas, as suas lentidões, as suas sombras, superficialmente ignoradas durante décadas ao longo das quais se chegou a pensar que bastava deixar a barca vogar ao sabor da corrente. E, agora, que estamos tão desorientados, ainda temos de nos encarregar da multidão? Por agora não, talvez quando, e se, nos reorganizarmos. Aguardemos que tudo volte à normalidade. Se voltar. Depois veremos…

Não faz assim, o Mestre. Não conduz a esta atitude a compaixão, a verdadeira, a de Deus. A fome pode saciar-se, a física e a interior, mas com uma só condição: pôr-se em jogo.

 

Pães e peixes

Não somos capazes, não temos os meios, não temos suficiente fé, temos demasiado joio no coração. Toda a desculpa é boa para contornar o pedido. Jesus insiste: para Ele serve aquilo que se é, mesmo que o que se é seja pouco.

A desproporção é pretendida: poucos pães e peixes para uma multidão imensa; é uma situação que produz incómodo, desconforto, a mesma sensação que experimentamos nós quando procuramos anunciar a Palavra, realizar gestos de solidariedade, de bem. Estou com os meus jovens uma hora por semana: jogamos, falamos, anuncio-lhes a bela maneira de viver que Jesus tinha. Depois saem, e durante uma semana inteira vão ouvir e viver o contrário: violência, egoísmo, oportunismo.

Vivo como homem de paz, e os meus colegas de escritório aproveitam-se e aldrabam-me. Consagro a minha vida ao Evangelho, corro como um louco de uma paróquia para outra, e as pessoas pensam que eu sou uma espécie de funcionário do Vaticano? Será que tenho de me render?

Não: o nosso gesto é fecundo se acompanha a obra de Deus, se é sinal profético que imita o gesto amplo do semeador, é ícone de esperança que imita a paciência para com o joio do dono do campo.

 

Quem ou que coisa?

Paulo reflete sobre o seu percurso e escreve à comunidade de Roma (Romanos 8,35-37-39). A vida é cansativa, então como hoje, para todos. E as primeiras, frágeis, comunidades tiveram de lidar com muitas dificuldades. Paulo ousa. Interroga. Provoca. Consola.

Quem nos separará do amor de Cristo? E faz um elenco. Hoje diríamos: a crise, o Covid, a falta de trabalho, uma Igreja pouco entusiasta, que embalsama em vez de guardar e dar. Nada. Nada nos pode separar, nem sequer nós próprios. Nem sequer as nossas fragilidades. Nem sequer os erros, nem sequer este tempo que parece esquecer o essencial.

 

O outro pão

Mateus, ao narrar o gesto de Jesus, alude claramente à Eucaristia da comunidade. Encontramos a força para nos colocarmos em jogo, para partilhar aquele pouco que somos só, e na condição, de alcançar o gesto extraordinário de Jesus, que, em primeiro lugar, se torna alimento. A Eucaristia torna-se força e modelo do nosso agir.

Nada nos separa do amor de Cristo. Por isso podemos fazer-nos pão partido.


 

Paolo Curtaz
In Paolo Curtaz
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: kovalnadiya/Bigstock.com
Publicado em 08.10.2023

 

 
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