Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Rua da Saudade

Rosario Castellanos

Foi recentemente publicada – pela Antígona – uma antologia da poesia de Rosario Castellanos: Poemas escolhidos [seleção e tradução de Jorge Melícias].

Rosario Castellanos nasceu na Cidade do México, em 1925. A infância passou-a numa propriedade rural da família, em Comitán. Teria sido um tempo edénico, não fossem as relações familiares, o contexto da morte do seu irmão [em 1933, com apenas sete anos] e o modo como se foi apercebendo de clivagens e de um tolerado sistema de discriminação e submissão da mulher e do indígena.

Regressa à Cidade do México no início da década de 40. Aí, termina os estudos liceais, estabelece contactos no meio literário, publica os primeiros poemas e estuda Filosofia na Universidad Nacional Autónoma de México. Em 1948, a morte dos seus pais coincide com a publicação dos dois primeiros livros de poesia.

A década de 50 é marcada pela prossecução dos estudos filosóficos, uma estada em Madrid, diversos cargos e causas, livros e o casamento com Ricardo Guerra, em 1958. Passados quatro anos, Rosario Castellanos será finalmente mãe, depois de dolorosas perdas – abortos e a morte de uma filha recém-nascida, a quem dedicará Lívida luz [1960]. Sempre entre cargos e causas, viverá nos EUA, conciliando a docência e a investigação, a maternidade e a escrita.

O divórcio, em 1971, antecede a partida para Telavive, onde assume a Embaixada do México em Israel. Dividirá o seu tempo entre as funções diplomáticas, a docência universitária e o jornalismo cultural. Em 1974, morre vítima de um acidente doméstico – tinha, então, 49 anos.

A sua obra poética, desdobrada em mais de dez livros, publicados entre 1948 e 1971, é reconhecida como uma obra de referência não apenas no contexto hispano-americano do século XX.

Os principais leitmotive da poesia de Rosario Castellanos estão profundamente enraizados na sua experiência existencial. A sua obra poética, representada nesta antologia, organiza-se sob o arco da abóboda que se desenha entre dois extraordinários poemas: «Anotações para uma profissão de fé» e «Muro de Lamentações».

O imo desta poesia é toda a reflexão poético-filosófica em torno da condição humana: o corpo-ruína, a temporalidade e o desterro, todas as mortes que há dentro da vida… e da morte. Este imo comunica com outros lugares, também eles ligados entre si: o lugar do abandono, da solidão; o lugar da condição da mulher, do corpo e da sexualidade; e o lugar de Deus, da transcendência, da espiritualidade.

A força desta poesia é da ordem da exigência. É uma poesia que exige ser lida com força. A intensa lucidez e a acuidade da sua inteligência não prescindem de um tom predominantemente elegíaco e noturno, ocasionalmente visitado por uma ironia subtil.



Percebemos em «Anotações para uma profissão de fé» que a «solidão traçou a sua paisagem de escombros». No entanto, Rosario Castellanos regressa ao princípio [como numa espécie de cosmogonia, uma mistagógica narrativa de origem] e recorda que – num dia de amor – desceu à terra. Encontramos, então, o espanto: o «mundo era a forma perpétua do assombro […] e o silêncio, uma simples condição das coisas». Alguém – Deus? – dissera que não era bom que a beleza estivesse desamparada.

Nesse éden, cada espécie «queria estabelecer-se, conhecer-se/ e ensaiava as notas da sua essência». É a própria poetisa quem lamenta o tempo e a temporalidade: «Não entendo por que/ foi indispensável que alguém inventasse o relógio/ e desde então tudo se atrasa ou adianta». E lamenta a expulsão, o desterro: «Que implacável foi Deus […]. Como desceu o arcanjo resplandecendo/ com uma decidida espada de latão!». E, com o desterro, veio o esquecimento [«Queremos esquecer o leite que sorvemos/ nos úberes de Deus»], o abandono [«Abandonados sempre. […] Nada mais que abandonados»] e a morte:

Engano neste cego desnudar-se,
terror do ataúde escondido no leito,
do sudário estendido
e da marmórea lápide caindo sobre o peito.
[…]
É assim que nascem os nossos filhos.
Parimos com dor e com vergonha,
cortamos o cordão umbilical depressa
como quem se desprende de um fardo ou de um castigo.

É assim que amamos e fruímos
e ainda fazemos desse festim de vermes
novelas pornográficas
ou filmes só para adultos.
E regozijamo-nos de ser segredo,
de piscarmos os olhos nas costas da morte.

E com todas as mortes que há dentro da vida e da morte, veio essa solidão que «traçou a sua paisagem de escombros», veio esse cansaço de «morrer a prazo» que trouxe consigo a hipótese do suicídio [mas o «suicídio também passou de moda»]. Rosario Castellanos lembra-nos que nos tornamos alérgicos a declarações de amor por carta, que já não morremos tuberculosos, nem trepamos varandas, nem suspiramos em vão. E conclui: «Já não somos românticos», talvez lastimando a pertença à «geração moderna e problemática».

A redenção já não a encontra na Europa em ruínas do pós-guerra, esse velho continente representado neste poema por uma «catedral mal ventilada,/ invadida de mofo e ouro inútil/ e ao fundo um cartaz: “Negócio falido”». E propõe:

Abandonemos agora tanto cansaço.
Deixemos que os mortos enterrem os seus mortos
e procuremos a aurora
apaixonadamente atentos ao seu sinal.

O renascer poderia acontecer na sua paisagem primordial, no seu novo mundo: nesse «continente que agoniza/ bem podemos plantar uma esperança».

A mulher, o amor e a morte são indissociáveis numa poesia em que se escuta um fremente sentimento de abandono e solidão. Sem nunca ceder ao paroxismo, Rosario Castellanos possibilita-nos uma intimidade no limite daquilo que diria ser uma poética do desespero, um desespero-silêncio, tantas vezes implícito no modo como se relaciona consigo própria, com os outros e com uma ideia de Deus, tanto no contexto da tradição judaico-cristã, como no colorido autóctone das tradições culturais e religiosas ameríndias com que conviveu desde a sua infância.

Com efeito, apesar de quaisquer clivagens socioculturais e religiosas, esta poesia não prescinde de Deus, mesmo quando o seu «nome oculto» é «essa blasfémia/ que todos escondemos/ no recanto mais lúgubre do peito».

Unamuno, a propósito de Espinosa, escreveu em Del sentimiento trágico de la vida: «Como a otros les duele una mano, o un pie, o el corazón, o la cabeza, a Spinoza le dolía Dios». Creio que também a Rosario Castellanos lhe doía Deus, porém, no poema «Diálogo do sábio e do seu discípulo» esta relação dolente aparece invertida: «Não estás sozinho […]./ Tu dóis a Deus; o universo/ faz-se pequeno em ti». Situamo-nos, aqui, num desses lugares onde Deus dói ao homem na mesma proporção e com a mesma intensidade com que o homem dói a Deus.

Esta aproximação à poesia de Rosario Castellanos descreve esse arco que desenha uma abóboda pressentida entre «Anotações para uma profissão de fé» e esse outro poema admirável: «Muro de Lamentações», De la vigilia estéril [1950].

O imaginário da poetisa mexicana revela-se aqui em toda a sua intensidade – um imaginário vagamente tremendista nos móbiles do seu imo. Assim, vemos as crianças irromperem dos ventres como ataúdes e a alimentarem-se de venenos no peito materno. Assim, sabemos que a flor é breve e o tempo interminável, que a terra é um cadáver decompondo-se e o espanto a máscara perfeita do nada. E encontramos Rosario Castellanos resistente, penitente, desterrada:

Alguém, eu, ajoelhada: rasguei as minhas vestes
e cobri de cinzas a minha cabeça.
Choro por essa pátria que nunca tive,
[…] eu sou daqueles desterrados
para quem o pão da sua mesa é de outros
e o seu leito uma imensa planície abandonada
e toda a voz humana uma língua estrangeira. […]

Eu dormirei na Mão que parte os relógios.

Para trás ficam as memórias apagadas, os mortos que não transcendem os seus túmulos. E pela primeira vez vê o mundo:

Sou filha de mim mesma.
Do meu sonho nasci. O meu sonho sustenta-me. […]

Na minha genealogia não há mais que uma palavra:
Solidão.

Há um rasto de agonia no modo como professa a sua fé.

Soubemos que dormirá na Mão que parte os relógios, essa Mão que reintroduz a perenidade, a Mão de Deus. Na adversidade diz o Seu nome. Procura entre as coisas a Sua pegada, mas não a encontra. E o que o seu ouvido toca converte-se em silêncio.

E mesmo quando Deus é a reverberação do abandono, Rosario Castellanos resiste: «Não direi com os outros que também me esqueceste./ Não ingressarei no coro dos que te desprezam/ nem seguirei o exército blasfemo. […] Amo-te até aos limites extremos». Está preparada para esta impressiva profissão de fé:

Creio em Ti com as pálpebras fechadas.
Creio no Teu fogo sempre renovado.

O meu coração alarga-se para conter os Teus limites.

Na poesia de Rosario Castellanos, escutamos o rumor da distância e da perda, o rumor dos espaços vazios; descobrimos o desejo de recordar, rever e reencontrar. Nesta obra seminal, somos confrontados com a natureza silente e dolente de quanto vive e por isso perece… e por isso existe em desterro e resiste ao esquecimento.

Nesta poesia, escutamos o murmúrio dos mortos, do outro, da vítima; descobrimos que sempre nos dói a dor de alguém e que a vida é essa textura áspera em que aprendemos a soletrar a solidão e a perscrutar «essa luz tão breve, essa fulminação,/ esse vasto silêncio que se segue à catástrofe».

Trata-se de uma poesia que insiste – e resiste – no amor e que ocasionalmente resgata alguma esperança de um qualquer lugar remoto, sempre com a solidariedade de quem sabe que partilhamos apenas um «desastre lento» e que a solidão traça a sua «paisagem de escombros».

E assim pomo-nos à escuta, enquanto urdimos a espera: escutamos as engrenagens da insónia que se organiza entre o nome soletrado do caos e o ordenamento do mundo; escutamos essa palavra que é apenas «a imagem deformada num espelho». E aprendemos: aprendemos que no beijo se mescla o sabor da morte e no abraço cingimos a recordação de que somos órfãos e vamos morrer.  E assim esperamos algo tão improvável como a redenção.

Quando Rosario Castellanos morreu, em 1974, talvez não tenha realmente morrido, como ela própria escreveu: «seria preferível morrer. Mas eu sei que para mim não há morte./ Porque a dor – e que outra coisa sou para além de dor? – me fez eterna». Em «Encargo», deixará inscritos estes versos-epitáfio:

Quando eu morrer dai-me a morte que me falta
e não me recordeis.
Não repitais o meu nome até que o ar seja
de novo transparente.

Creio que é nesse frémito – em que se torna transparente o ar – que importa repetir o seu nome.


 

José Rui Teixeira
Investigador, poeta
Imagem de topo: Gabriel Pacheco | D.R.
Publicado em 26.08.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 

 
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Impressão digital
Paisagens
Prémio Árvore da Vida
Vídeos