Depois dos tempos do Cristo romântico, veio o impacto das pretensões de modernidade científica e sociológica. Durante meio século de tentativas de Epopeia da Humanidade, confrontado com os deuses desterrados ou com eles foragido, Jesus encimou as referências simbólicas do percurso milenar de emancipação da Consciência. Quase sempre irradiava ainda aquele esplendor doce e terrível que, com Renan, se reconhecia «força divina».
Mas eis que, na viragem para o século XX, sobre o trágico e o grotesco Raul Brandão projeta a esperança - «O futuro é Jesus ao cimo da montanha» - que sustenta o sentido libertário da justiça e o sonho da vida resgatada com ternura.
Em contrapartida, outra ficção de inspiração nietzscheana conduz o próprio Cristo àquela fé descrente que Unamuno exaltaria: lembre-se sobretudo o «Diálogo com uma águia» que abre o livro de contos Serão Inquieto de António Patrício. Mais um pouco e estaremos no titanismo cristão de Torga: «... mas desceste da Cruz», lamentará o Diário, para dizer a inconformidade com a escatologia posterior. Mais outro pouco - a armadilha pérfida de Deus ao Homem, num António Osório por exemplo («Arca de Adão») - e estaremos em Saramago e no Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Entretanto, Gomes Leal não só enfrenta, por ele e por tantos outros, as contradições entre o vínculo placentário ao doce Rabi prelecionando entre os sicómoros e a apoteose ao Fausto do Cientismo que é o primeiro Anti-Cristo, mas também supera o pressentimento do retorno do trágico reconhecendo a divindade do "grande Reparador". Guerra Junqueiro depura o grande desígnio de fundir Prometeu e Cristo em energia libertadora; e estende essa emancipação moral e essa união amorosa do plano histórico-social ao plano cosmológico. Por isso quer nos seus poemas do século XX, quer no ignorado António Corrêa d’Oliveira do primeiro decénio, surge uma poética antecipação do Cristo cósmico de Teilhard de Chardrin, ao menos enquanto divino Centro das «Bodas Universais» da beleza e da justiça.
Sem embargo da colaboração de Teixeira de Pascoaes com Raul Brandão na tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa – espécie de auto paródico contra a denegação da Caridade como fundamento da existência cristã e, logo, como fonte da resposta ética e soteriológica, em que a itinerância indagante e prestante que é peculiar dos coautores se revê em Jesus exemplo supremo do «Caminho» –, aquele tipo de primado de Cristo ficará sempre inconcluso na poesia gnóstica de Pascoaes, não só pela bipolaridade de Jesus e Pã, mas por todas as tensões da sua dialética de Criador e Criatura. Aí, entre a «aurora anoitecida» e a «noite alvorescente», o Homem e Cristo estão já (en)carregados de redimir, em ascensão dolorista, a imperfeição e o remorso de Deus.
Por aqui, com mais um tanto de Dostoievsky e de Chestov, se irá ter a Régio e à sua vivência agónica de uma vocação mística dilacerada na dificuldade inelutável de rasurar ontologicamente o Mal e de sustentar a fé na divindade de Jesus.
Por outro lado, também ao longo de bom meio século (desde cerca de 1885 a cerca de 1935), parte da Literatura portuguesa vê-se conquistada por versões mais ou menos ortodoxas de neo-franciscanismo, desde a motivação tolstoiana de Jaime de Magalhães Lima ou as réplicas cristãs de J.-M. Guyau na historiosofia e na criação literária de Jaime Cortesão até às conversões de anarcossindicalistas como Manuel Ribeiro ou do filósofo e poeta em prosa Leonardo Coimbra, passando pela maré cheia de poesia e ficção de fervor católico no Neorromantismo lusitanista que prepondera entre Orpheu e Presença.
Retificando o humano e refontalizando as virtudes pela visão inocente da Natureza e pela recapitulação de todas as coisas em Cristo, esse neo-franciscanismo inspirará até hoje numerosas realizações literárias. Mas não poderá evitar que, em contraste com a profusão de tematizações do Natal (não confinado à contemplação ortodoxa do mistério da Encarnação, nem sequer sempre centrado na celebração do nascimento de Jesus), a exigência de metanoia e conversão inerente à vivência profunda dos mistérios redentivos da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo venha levando à diminuição das sua representação ou figuração literária.
Nas margens daquele neo-franciscanismo, o Só de António Nobre reformulava a consagração retórica e simbólica do Poeta predestinado como outro Cristo. Durante décadas do século XX, a literatura portuguesa retomará essa autorrepresentação como "alter Christus", ora veladamente, ora em ostensiva iconografia. Mais perto de nós, o verbo que responde ao Verbo ganha ímpar expressão na poesia (ora penitente, ora jubilatória) de Vitorino Nemésio. E no espaço ascético-místico dessa poesia, entre o sopro do Espírito Santo e o diálogo com o Pai, não falta a revelação religiosa do Mediador único: veja-se por exemplo «Parce, Jesu» de Nem Toda a Noite a Vida e a tocante «Prece» que encerra O Verbo e a Morte.
Desigualmente cristocêntrica é a criação poética de muito "Jogral de Deus" (como se dirá João Maia e como discretamente será o próprio Luís Archer, cientista e sacerdote), mormente na corrente da “Poesia Nova” (desde um Miguel Trigueiros a um Fernando de Paços, passando pelo jovem J. V. Pina Martins/Duarte de Montalegre) e até muita ficção narrativa e dramática que acompanha Nemésio em registo mais tradicionalista – enquanto à margem do Neorrealismo a questão social e a condição operária são revisitadas sob o signo do neo-tomismo em romancistas como Bastos Xavier (v. g. Cana ao Vento) e no projeto de «realismo integral» de Francisco Costa (v. g. Cárcere Invisível).
Aliás, quando um daqueles jograis de Deus (António Salvado) antologia por 1969 A Paixão de Cristo na Poesia Portuguesa, são muito variados os timbres que aí regem os cantos - lembro o «Gólgota» de Eduíno de Jesus ou extratos de «O Sangue, a Água e o Vento» de Pedro Tamen. Depois, para alguma da melhor literatura contemporânea se poderia continuar a transpor um título de Guedes de Amorim que fez época: Jesus passou por aqui (reed. 1964). Lembremos Cinatti ("A minha fome de Deus/.../ é Cristo crucificado") e Sophia de Mello Breyner Andresen (não só no Cristo cigano, mas através de «O jantar do bispo» e outros Contos Exemplares e da sua outra poesia de busca da "aliança" e da "comunhão"); lembremos José Blanc de Portugal e Natércia Freire, Fernando Echevarría e Vitor Matos e Sá, Jorge de Amorim e António Barahona da Fonseca, José Valle de Figueiredo (onde o corpo e sangue de Cristo são penhor eucarístico de "a outra cidade do Alto") e Rodrigo Emílio (".../ que nos conduz da Paixão/ ao caminho d'Emaús"); por outro lado, lembremos Ruben A. e o Frei Ciro de A Torre da Barbela, ou Mário Cláudio (evoluindo de um diferente advento do Filho na Tocata para Dois Clarins até à revisitação poética das altas moradas teresianas para o encontro místico com Cristo), etc.
Dos anos 50 ressaltou como forte legado, para os nossos dias a reunião com Cristo em torno da "Távola Redonda". Três nomes bastam para o evidenciar em meridianos diversos: o Sebastião da Gama de "O Messias" e da edificação perante a beleza de Deus encarnada nas coisas e nos seres; o António Manuel Couto Viana que, enquanto permanece fiel ao seu Íntimo Retábulo de Natal, tenta merecer do Cristo crucificado e ressurreto a Graça na liberdade de relação - maxime numa bela «Oração» de Quaresma e Páscoa (in O Coração e a Espada); o David Mourão-Ferreira que, na versatilidade de tom do seu recorrente Cancioneiro de Natal, confia nas «mão aladas» de Jesus Cristo para culminar a comunicação dos santos («Segunda elegia de Natal») e a cíclica refundação do ser na superação do mal e do nada. Poucas vezes como em David e na sua «Confissão de Natal» de 1985 a poesia terá vivido de forma tão impressiva a relação da pessoa humana com a Pessoa de Jesus Cristo: «Vive o Teu Nome no meu nome/ Eu sou David Mas de Jesus/ Daí a sede mais a fome/ Da Tua Cruz// Vive o Teu Nome no meu nome/ Não por acaso ó meu Jesus/ É no que a todos mais escondo/ Que vives Tu».
Dos anos 60 não se apagou ainda um anseio novo de o escritor ser Cristo «na ambição de tê-lo a falar por mim» (Vasco Miranda). Nesses tempos circum-conciliares, uma literatura católica renovada à luz de E. Mounier e de Teilhard de Chardin traz de novo Cristo para o coração do diálogo tenso da pessoa com o mundo e da Salvação cósmica. É assim sobretudo em torno de O Tempo e o Modo e das coleções da Moraes Editora (António Alçada Batista e Pedro Tamen, M. S. Lourenço e Cristovam Pavia, etc), mas vinha já sendo assim com Sophia e com a «Totalização na Alegria» do Alfa e Omega de Vasco Miranda. Aparentado é o legado de Ruy Belo, quer na vertente jubilosa de pôr Deus a olhar «infinitamente a sua obra» pelos olhos da criatura, quer na vertente do amargo desencontro dos «vencidos do catolicismo», passando pelos «Versos do pobre católico» no «Tempo duvidoso» em que lhe foi dado testemunhar Cristo.
A contemplação do mistério pascal e a adesão à pessoa de Jesus como Redentor esbatem-se bastante na literatura portuguesa dos anos 70 e 80, ressentindo-se mais do que a inspiração mariânica e do que a evocação afetiva do Natal da erosão das referências bíblicas e doutrinais na atmosfera sociológica e cultural, em tempos que já nem eram os daquele «ateísmo católico» em que se situara (e reatractara?) Jorge de Sena, nem os de grandes criações com estruturas verbo-simbólicas cristãs por escritores não vivencialmente religiosos como Herberto Helder.
Mas, para além de muitas fidelidades, os anos 90 trouxeram, no quadro de revitalização multímoda do religioso na arte, casos fascinantes de criatividade literária ungida pela intimidade com Cristo. Destaquemos apenas a feliz coincidência de irredutível vocação sacerdotal, de fecunda posição universitária e de autêntica vocação poética em vários desses casos: na delicadeza epocal de Dizer Deus Ao (des)abrigo do Nome (José Augusto Mourão, 1991), Cristo ilumina «O rosto das palavras» na poesia paragramática de Mário Garcia (Roma, Vieira, Veneza, 1998) e fecunda os Baldios de José Tolentino de Mendonça - ou não fora Ele «o cavador e o trabalho e a vinha», como reaprendemos na meteórica vida e na fulgurante poesia de Daniel Faria.
Aí, hoje mesmo (que é tempo de espírito cristão em Adília Lopes e Paulo José Miranda, em Pedro Sena-Lino e Jorge Reis-Sá, em Ruy Ventura e José Rui Teixeira, etc.), «.../ O cordeiro está em pé como que degolado e o sangue/ Corre da ferida viva como um braseiro. A lâmpada/ Abre uma constelação no chão: o livro/ Que nomeia e nutre os ressuscitados./ ... /O homem junta as duas mãos como bebe/ E queima-se nas mãos, na boca, nas entranhas/ Com o lume muito novo da bebida.»