Teatro
"Sancta viscera tua": A Paixão de Cristo entre tradição e inovação
A Paixão de Cristo sempre inspirou representações teatrais, sobretudo em contexto popular. E esse exercício de arte e de devoção sempre tem sido visto como muito eficaz para a evangelização.
Ora ocorreu-nos presenciar por estes dias, na igreja de Santa Clara no Porto, uma representação dos passos de Cristo que merece ser posta em evidência pelo seu caráter inovador do teatro religioso.
A peça tem um título latino que foi buscar a Santa Hildegarda de Bingen, “Sancta Viscera Tua”, e usa a simbólica tradicional das representações da Paixão: a multidão, o Ecce Homo, os instrumentos do suplício (as canas, o santo lenho), a tempestade.
O aspeto inovador encontra-se, quanto a nós, na concisão expressiva, na renúncia à palavra, numa música vocal e instrumental orientada para a comoção dos ouvintes.
Em cinco atos, vai fazendo passar, literalmente, pelo meio da plateia o rumor da turba, a relíquia futura, o vero ícone, a cavidade deixada pelo desaparecimento (ressurreição) do corpo do Senhor.
Pareceu-nos muito significante a renúncia à palavra. De facto, num mundo de inflação de palavras, de imperialismo da informação, de conflito de interpretações, um exercício deliberado de renúncia é uma verdadeira forma de testemunho. Mas a redução de meios é geral nestes passos de Paixão.
A própria luz é deliberadamente escassa e a sua ausência (matéria negra) usada como forma de aludir ao sentido da morte. A música vocal e instrumental, usando com grande mestria os recursos expressivos da eletrónica aliada a instrumentos tradicionais ampliados e transformados dá um ótimo efeito quando ao objetivo de condoer o público com as dores de Cristo.
As opções estéticas têm, a nosso ver, uma virtualidade muito interessante para meter as pessoas dentro dos passos da Paixão. Neste ponto como noutros, a estética recente pode ser colocada ao serviço da vivência da fé de maneira mais eficiente do que a estética realista do passado.
É justo, por isso, felicitar Jonathan Saldanha que, à frente de um numeroso grupo, dá forma a este evento, que continua uma longa tradição de teatro religioso mas que tem o mérito de a inovar, pondo ao seu serviço os recursos expressivos novos.
O pároco da Sé fez muito bem em dar hospitalidade, no Porto, a um acontecimento cultural que terá também uma réplica na Cidade de Guimarães.
Jorge Teixeira da Cunha
Diretor-adjunto do Núcleo do Porto da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
In Voz Portucalense, 16.4.2014
16.04.14









