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«Uma cultura sem beleza é uma cultura sem contemplação»: D. António Marto, novo cardeal português

O papa anunciou hoje que vai nomear 14 cardeais, entre os quais o português D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, num consistório que ocorrerá a 28 de junho, data em que a Igreja celebra a solenidade litúrgica de S. Pedro e S. Paulo.

«Rezemos pelos novos cardeais, para que, confirmando a sua adesão a Cristo, Sumo Sacerdote misericordiosos e fiel, me ajudem no meu ministério de bispo de Roma para o bem de todo o santo povo fiel de Deus», concluiu Francisco a declaração.

Nascido a 5 de naio de 1947, em Tronco, concelho de Chaves, D. António Augusto dos Santos Marto estudou nos seminários de Vila Real e do Porto, sendo ordenado padre em Roma no ano de 1971, como presbítero da diocese de Vila Real.

Estudou Teologia Sistemática na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (de 1970 a 1977), onde fez o doutoramento, com a tese: "Esperança cristã e futuro do homem. Doutrina escatológica do Concílio Vaticano II".

Foi formador de candidatos ao sacerdócio no Seminário Maior do Porto e exerceu atividade docente no âmbito da Teologia, tendo sido diretor-adjunto da respetiva faculdade da Universidade Católica.

Foi nomeado bispo em 2000, por S. João Paulo II, tendo escolhido para lema episcopal: "Servidores da vossa alegria" (2 Coríntios 1,24). Foi bispo auxiliar de Braga de 2001 a 2004 e bispo de Viseu desde então até 22 de abril de 2006, quando recebeu, por parte de Bento XVI, a nomeação para bispo de Leiria-Fátima.

Foi delegado da Conferência Episcopal na Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia (COMECE) de 2011 a 2017. Foi vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa entre 2008 e 2011 e desde 2014.

Para D. António Marto, «revisitar as linguagens da beleza, na memoria teológica e cultural do Ocidente» é «o caminho para responder à questão decisiva sobre onde e como poderá ser possível, ao pensamento moderno e aos homens de hoje, reapropriar-se da via salvífica da beleza, e como ela e fonte de uma cultura de beleza».

Apresentamos seguidamente o excerto de um texto da autoria do novo cardeal incluído no livro "O Evangelho da Beleza" (ed. Paulinas, 2012), volume que compreende textos do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, e do artista esloveno P. Ivan Rupnik.

 

A beleza da santidade

«Nem todos são chamados a ser artistas, no sentido específico do termo. Mas, segundo a expressão do Génesis, todo o homem recebeu a tarefa de ser artífice da própria vida: de certa forma, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima» (João Paulo II, "Carta aos Artistas", 2). Cada um de nós pode e deve fazer da própria existência, pessoal e comunitária, algo de belo, um anúncio da beleza de Deus, reflexo da sua santidade.

A santidade da existência é expressão incarnada da beleza da vida em Cristo e com Cristo, que se faz cultura quotidiana na retidão da consciência e da vida, no dom de si, no serviço da caridade. Como diz Sto. Agostinho: «Quanto mais cresce em ti o amor, mais cresce a beleza, porque a caridade é a beleza da alma».

Há um dado evangélico que nos ajuda a reconhecer a beleza da santidade. Sublinha-o Pavel Florenski, o "Leonardo da Vinci russo", génio da ciência e do pensamento filosófico e teológico, sacerdote de Cristo e mártir do extermínio estalinista. Comentando Mt 5,16 («Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens para que, vendo as vossas boas obras, deem gloria ao vosso Pai que está nos céus»), ele observa que «os vossos atos bons» não quer dizer «atos bons» em sentido moralista. Quer dizer «atos belos, revelações luminosas e harmoniosas da personalidade espiritual – sobretudo, um rosto luminoso, belo, de uma beleza através da qual se expande para fora a luz interior do homem – e, então, vencidos pela irresistibilidade desta luz, os homens louvam o Pai celeste, cuja imagem resplandeceu assim sobre a Terra».

Onde a caridade irradia, aí aflora a beleza que salva, aí se louva o Pai celeste, aí cresce a unidade dos homens em Cristo.

 

A consolação da beleza

O antigo contencioso entre beleza e dor tem uma figura de resolução: a consolação. Um sofrimento não negado pode encontrar sentido e respiração, se encontra uma pessoa ou um acontecimento capaz de derramar o óleo da consolação sobre as suas feridas. Tudo permanece idêntico e, todavia, cada coisa é vista de modo novo: quando uma luz dourada recai sobre os objetos, que estiveram sempre diante dos nossos olhos, eles, embora permanecendo idênticos, não são mais o que eram antes. Nada mais longe da consolação do que o esquecimento que se limita a envolver as coisas num cinzento nublado.

É uma experiencia ínsita na alma humana, que o belo pode consolar, que, entre os seus braços, o peso da existência encontra alivio. O belo pode ser consolador, mas não é uma terapia. Propor, a quem está mergulhado na dor, a beleza como resposta que vence o seu sofrimento, é cair numa pretensão impiedosa.

A dimensão de consolação ligada à beleza só é possível se somos surpreendidos pelo belo e não o consideramos alheio ao mundo da dor e do sentido. A beleza capaz da consolação testemunha que é possível aceder e abrir-se a uma «outra dimensão», diversa e mais intensa do que a dimensão quotidiana, que projeta um raio de luz sobre a «noite escura» de Sexta-Feira Santa, e uma palavra de esperança sobre o silêncio sepulcral do Sábado Santo da história, que está entre a dor da Cruz e a alegria da Páscoa.

A noite é um símbolo muito usado para descrever situações interiores da mente e do coração, mas também situações exteriores da historia. Basta pensar numa das obras mais conhecidas da mística católica: a "Noite escura" de S. João da Cruz. É um livro belíssimo, que começa com um cântico da alma do próprio santo – um dos cânticos
mais famosos de toda a literatura espiritual –, cuja primeira estrofe recita:

«Numa noite escura
Com ânsias de amor toda inflamada
Ó feliz ventura!
Saí sem ser notada
Estando já a minha casa sossegada».

Podemos recordar também a afirmação de Pascal, quando, referindo-se a uma sua noite luminosa, exclamava: «Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob... Alegria, alegria. Lágrimas de glória!».

A beleza destes instantes não é uma fuga. Eles provam, para si e para os outros, que o viver tem um significado, um sentido, e indicam que, se nem tudo é ainda resgatado, algum fragmento já o pode ser e, precisamente por isso, não fica fechado em si mesmo.

O adjetivo «inesquecível» ou a expressão «não esquecido», que caracterizam estas experiências de beleza, ao longo da repetitividade dos dias, confirmam que esses instantes não ficam fechados em si mesmos; são «outra coisa», mas a sua recordação acompanha-nos, ao longo do caminho quotidiano. O seu caráter fragmentário, guardado na memória, pode assim transformar-se em esperança de uma plenitude ainda não alcançada.

Para uma antropologia teológica que não se confronta só com a natureza, mas crê na criação e na ressurreição, o sofrer pode estar para a beleza como as dores para o parto.

Alguma coisa deve nascer, mas, quem veio à luz, é ainda só uma primícia à espera de um renascimento maior. A beleza é consoladora, somente, se desabrocha na esperança. Mas para ser digna da esperança, deve tomar a sério o sofrer universal, na solidariedade e na compaixão.

 

A civilização da beleza e do amor

A experiência cristã tem em si uma força intrínseca de irradiação, para o mundo, da beleza que salva. A fé, a esperança, a caridade, vividas no mundo e celebradas na liturgia, são fonte de uma cultura humanístico-social, na medida em que são portadoras de atitudes e comportamentos pessoais e sociais, nos vários âmbitos da convivência humana: o testemunho do mistério, a experiência da fraternidade, o espírito da reconciliação e da paz, o sentido da partilha e da solidariedade, a força da esperança, a busca da justiça, a experiència da Igreja como «casa e escola de comunhão», as atitudes de acolhimento e hospitalidade, a dimensão festiva da vida, a celebração do domingo como princípio de humanização e de repouso interior e exterior dos homens com Deus, com os outros e com a natureza, são atitudes fundamentais que configuram uma espiritualidade incarnada no mundo, contributo indispensável para construir a civilização da Beleza e do Amor.

Não há beleza sem amor; e onde há amor, aí há beleza!

 

A contemplação da beleza

O belo é para contemplar. É da ordem do olhar, e não do tato. Uma cultura sem beleza é uma cultura sem contemplação; e uma cultura sem contemplação é uma cultura sem beleza. Mas a contemplação requer uma conversão do olhar interior e exterior, requer o despertar da capacidade simbólica do homem, a unidade de concentração dos sentidos corpóreo-espirituais.

A uma sociedade como a nossa, que quer viver tudo em pouco tempo, é preciso opor e propor a coragem do longo prazo, do tempo, da liberdade e da concentração do espírito e dos sentidos. O ritmo da sociedade apressada, pressionada, stressada não é conciliável com a verdadeira perceção, a interiorização, o deslumbramento e a contemplação.

A velocidade à qual se sucedem as imagens de um "videoclip" não nos permite olhá-las verdadeiramente. Hoje, aprende-se a falar de uma obra, mas não se aprende a deixar-se penetrar pelo sentido real que nela está presente e que dela emana.

É preciso encorajar tudo o que estimula a nossa faculdade de contemplação, para que a beleza nos atraia, nos transforme. Paul Ricoeur falava da «segunda ingenuidade», tão necessária, depois do Século das Luzes. Não é um sinal de fraqueza, mas antes de grandeza do homem, deixar-se emocionar, porventura até às lágrimas, pelo Belo e pela Beleza que salva.

Jean Guitton, falando da arte, cita esta frase de Braque: «A obra de arte começa por um problema e acaba por uma oração». Falando-nos da beleza, terminemos também com uma oração que é uma obra de arte, um hino à Beleza que salva, e nos convida a contemplá-la: "Bem eu sei a fonte que mana e corre", de S. João da Cruz, em que Deus, no seu amor trinitário, é o mistério da fonte, e o mundo e os homens são o mistério da sede:

«Bem eu sei a fonte que mana e corre,
Embora seja noite.

Aquela eterna fonte não a vê ninguém
E bem sei onde é e donde vem,
Embora seja noite.

Não sei a fonte dela, que não há,
Mas sei que toda a fonte vem de lá,
Embora seja noite.

Não pode haver, eu sei, coisa tão bela
E céus e terra, beleza bebem dela,
Embora seja noite.

A claridade sua não escurece
E sei que toda a luz dela amanhece,
Embora seja noite.

Tão caudalosas são suas correntes
Que regam céus, infernos e as gentes,
Embora seja noite.

E esta eterna fonte está escondida
Em este vivo pão a dar-nos vida,
Embora seja noite.

Aqui está a chamar as criaturas
Que bebem desta água, e às escuras,
Porque é de noite.

Esta fonte viva que desejo,
Em este pão de vida, aí a vejo,
Embora de noite».



 

Edição: SNPC
Fontes: "O Evangelho da Beleza - Entre Bíblia e Teologia", Sala de Imprensa da Santa Sé, Diocese de Leiria-Fátima
Imagem: D. António Marto | Santuário de Fátima | D.R.
Publicado em 20.05.2018 | Correção da data de criação cardinalícia (antes 29 de junho) em 10.10.2023

 

 
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