Do ponto de vista puramente laico, quiçá ateu, de uma humanidade reduzida a mera matéria e energia, em que mesmo o chamado ‘espírito’ mais não é do que uma estranha e ignota metamorfose da energia em sentido, a sobrevivência da humanidade a todas as doenças não autoinfligidas que a têm acometido é algo de maravilhoso; simplesmente material, mas materialmente maravilhoso. Foram e são tantos os males nosológicos que perturbam e mesmo procuram aniquilar a espécie humana que é, de facto, espantoso que ainda exista.
Note-se que não há, neste registo, qualquer recurso a qualquer forma não enérgico-material de explicação e a magia, que tanto em abuso anda, como é também matéria e energia em psicológica loucura, não explica coisa alguma.
Todos os reinos biológicos parecem procurar eliminar esta especial espécie: dos monera, aos mais sofisticados vertebrados parasitas, dos vírus, às bactérias, aos fungos, tudo parece inteligir a seu modo próprio no ser humano um belíssimo manjar.
Ora, responde o biólogo, o mesmo se passa com qualquer espécie e indivíduo nessa espécie. É verdade, assim é. Todavia, nenhuma possui biólogos que tal estudem senão a humana, por mais laica e materialmente reduzida que seja.
O biólogo ateu, o biólogo crente – para lá de serem potencial manjar biológico para outras espécies, algumas das quais até o não metabolizarão como doença, mas como vulgar comida, por exemplo, um leão com fome – possuem a capacidade, sem dúvida enérgica e material, de se interrogar sobre que sentido tem servir de manjar, qualquer, a qualquer espécie.
O sentido de «doença» é necessariamente antrópico e projetado antropicamente pelo ser humano sobre o que não é humano: assim, os cavalos adoecem, mas as sociedades, também; a cultura fica doente, o próprio cosmo – imagine-se a dimensão… – está a ficar doente.
Por outro lado, se o ser humano é apenas esta coisa material e energética e mais nada, que importância tem adoecer? Porque sofre com isso? Todavia, que importância tem que a matéria ou a energia sofram? Aprofunde-se: que sentido faz perguntar sobre o sofrimento da matéria ou da energia? O ser humano é fundamentalmente constituído por quatro elementos químicos: carbono, oxigénio, hidrogénio e nitrogénio, mais uns pós de muitos outros elementos, fundamentais, mas presentes em quantidades mínimas. O ser humano, deste ponto de vista, é uma tabela periódica dos elementos em quantidade alternativa; e nada mais.
Esta coisa química sofre? A Química sofre? A Física sofre? O que é o sofrimento de uma molécula de carbono? Então, deste ponto de vista, o sofrimento nada mais é do que uma ilusão, uma não-assunção da realidade primeira e última do ser humano, da sua rasteira materialidade e energeticidade. Assuma-se tal, que logo o sofrimento acaba. Ou não será assim?
A outra razão invocável é a de que, para lá ou para cá do sofrimento, a doença leva ou pode levar à morte. No entanto, se se é apenas matéria e energia, que nunca são em si mesmas verdadeiramente mais do que isso, sendo a própria vida uma ilusão, que importância tem morrer, forma de mutação organizacional da matéria e forma de a entropia energética se ir apoderando do mundo? Não é assim que é e não é assim que ‘deve ser’? Deste ponto de vista, nunca estivemos verdadeiramente vivos, pois a matéria e a energia nunca são mais do que realidades que coincidem exatamente como que são, não passando a vida de formas efémeras de reordenamento material e energético, este último sempre contribuindo para a perda da organização da energia, para a entropia, verdadeira senhora do mundo (a menos que a equação entrópica universal seja reversível e a energia volte ao nada de que proveio, energeticamente ordenado?).
Deste ponto de vista, então, a doença não tem importância alguma.
Não se percebe, assim, a importância dada por quem assim pensa à pandemia que avassala o mundo desde finais do ano de 2019. Por que razão se afadigam os cientistas ateus para combater a doença, se material e energeticamente o vírus mais não faz do que aquilo que se espera de um vírus?
Repare-se que de nada serve invocar termos como «esperança», pois, neste horizonte, não há qualquer forma de esperança que possa transcender o horizonte material da vida humana. Falar de esperança neste horizonte é falar de esperar na aniquilação, o que é, no mínimo, estranho.
Dir-se-á que é por «amor» que trabalha quem vive neste ambiente. Todavia, se se compreende que haja «amor a quê», já não se compreende que haja «amor para quê». Ama-se os filhos, eventualmente a mulher ou o marido, no sentido de que se quer, de facto, o seu bem. Mas esse bem é absolutamente efémero. Então, para que serve esse mesmo amor, condenado desde o início?
Poder-se-á também dizer que, para lá da sobrevivência – inexistente – do indivíduo, é pela sobrevivência da espécie que se labuta e que o trabalho contra esta pandemia serve para que a humanidade possa sobreviver. Sem dúvida. Todavia, não é ilusório pensar-se, neste ambiente, que a humanidade sobreviva muito mais tempo? Talvez mais uns milhares de anos? E daqui a dez mil milhões de anos, onde estará, sequer, o monumento da humanidade? Dela não restarão senão os elementos químicos constituintes, num mundo cada vez mais frio e desorganizado.
Vale a pena tanta labuta para tudo terminar assim?
É por uma razão estética: trabalha-se assim não só porque dá gozo lutar perdidamente, tragicamente contra a entropia, mas porque, ao fazer tal, se mostra a superioridade dos que aceitam a ironia de viver e morrer pelo simples prazer de viver e morrer, enquanto vivos, para nada lhes interessando isso a que os tontos chamam «sentido». A efémera chama da vida efemeramente se autossaboreia e tudo mais não é mais do que este sabor condenado à aniquilação. Pura estesia do ato. Antecâmara da aniquilação, absurdo absoluto do gosto que se vai perder para sempre.
Todavia, nada disto, neste contexto, tem qualquer realidade para lá da ilusão autocomplacente do condenado à aniquilação que com tal vida se contenta. Para quê viver? Eis a questão.
A mensagem de Cristo, que assume o sentido amoroso da criação que se encontra em Génesis 1, rompe com este sentido-sem-sentido de «cadáver adiado» (terrível expressão de Fernando Pessoa), mostrando não apenas o que é o trabalho de amor, como labor no sentido do bem do outro, que é o bem de todos, como, não apenas convoca, mas intima para uma abertura de vida trans-cósmica, logo trans-material e trans-entrópica, para a criação e, nela, para o ser humano.
Não haverá, em todas estas lutas contra a doença e a morte, mormente nesta ação antipandémica tendencialmente universal, a sombra de uma qualquer crença em algo que faça realmente sentido porque transcende a triste entropia endocósmica?
O amor e o bem-comum que propicia só fazem real sentido num horizonte em que tal ação ressoe infinita e eternamente. O mais são cadáveres mais ou menos adiados.
Que o ano de 2021 seja um ano de vida.