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“A cidade dos desejos ardentes”: Cardeal Tolentino prefacia texto do seu “sucessor” no retiro do papa

«Quando nos dispomos a este itinerário de “redescoberta” de Deus na vida, percebemos, com uma intensidade que nos converte e reconfigura, aquilo que o olhar baço da rotina não nos deixa ver: que “a vida é Ele, a esperança é Ele, o futuro é Ele”. Debaixo das nossas cinzas, distrações e escombros, o fogo de Deus precisa sempre de ser reavivado.

As palavras do cardeal José Tolentino Mendonça, entretecidas com as do abade Bernardo Gianni, cruzam-se no prefácio do livro “A cidade dos desejos ardentes – Por olhares e gestos pascais na vida do mundo” (ed. Paulinas), composto pelas meditações que o religioso italiano propôs ao papa Francisco e à cúria do Vaticano na Quaresma de 2019, sucedendo, nesta tarefa, ao biblista português, que em 2018 assumiu idêntico papel de pregador.

«Que o Evangelho se torne cidade é realmente a grande esperança que deixo no coração de cada um, para que os caminhos por onde passamos sejam o reflexo autêntico de uma luz que só Cristo acendeu na história dos homens e das mulheres de todos os tempos», aponta o autor, quase a concluir o livro, do qual propomos um excerto, a par do prefácio.

 

Prefácio
Card. José Tolentino Mendonça
In “A cidade dos desejos ardentes”

Florença é um caso. Têm razão aqueles que a colocam no topo dos lugares inesquecíveis que há no mundo. «A cidade das flores» possui um património artístico inigualável; tem uma multidão de igrejas e museus que são verdadeiros relicários de beleza; e o próprio desenho da cidade oferece aos que a visitam uma emocionante e rara experiência de harmonia.

Visitar Florença é reencontrar o sonho dos grandes mestres do medievo e do renascimento: é escutar, misturada com o rumor do rio Arno, a voz limpidíssima de Dante; é contactar, em cada uma das austeras celas do Convento de São Marcos, com a mística serena de Fra Angelico; é impressionar-se com o gigantismo mágico da visão de Miguel Ângelo.

Mas uma cidade não pode ser só isso. A verdade é que por mais extraordinária que seja a beleza do passado ela não basta ao coração do homem. Não nos basta o ardente desejo de ontem. O perigo é olhar para Florença (e para a vida!) como um museu a céu aberto e não ver como a história continua, não compreender que a única maneira de estar à altura desse passado é viver apaixonadamente o aqui e o agora, arriscando também ser frequentadores do futuro. De facto, a geografia da Graça não é aquela que deixamos atrás das costas, mas aquela sempre nova que Deus nos convida a percorrer.



Bernardo Giani nasceu em Florença em 1968. É ali que faz estudos literários, especializando-se na cultura do mundo medieval e humanista, de que é um cultor apaixonado. Até aos 24 anos de idade vive como não-crente. Na noite de Natal de 1992, entra com um amigo, por curiosidade, na Igreja das Beneditinas de Rosano, a poucos quilómetros de Florença. E já não sai o mesmo



Um dos miradouros mais certeiros para olhar Florença é a colina a oriente onde está situada a Abadia de São Miniato. É lá que vive o autor destes exercícios espirituais que o leitor tem entre mãos, Dom Bernardo Gianni. Habitando num lugar assim, é natural que ele parta da visão de Florença, pois como recorda o místico medieval Ricardo de São Vítor «onde há amor, há um olhar». Mas Bernardo muito sabiamente transforma essa Florença, cantada por tantos poetas e génios de pensamento, em metáfora de todas as cidades do mundo, de todos os lugares existenciais, exteriores e interiores, onde os filhos dos homens habitam. E o seu programa não pode ser mais essencial: propor-nos uma redescoberta adorante e contemplativa da própria vida, para reconhecermos nela «os vestígios e os indícios que o Senhor não se cansa de deixar na sua passagem pela nossa história». Quando nos dispomos a este itinerário de «redescoberta» de Deus na vida, percebemos, com uma intensidade que nos converte e reconfigura, aquilo que o olhar baço da rotina não nos deixa ver: que «a vida é Ele, a esperança é Ele, o futuro é Ele». Debaixo das nossas cinzas, distrações e escombros, o fogo de Deus precisa sempre de ser reavivado. A finalidade de uns exercícios espirituais é aquela que o apóstolo Paulo recorda na Segunda Carta a Timóteo (1,6): «recomendo-te que reacendas o dom de Deus que se encontra em ti».

Para essa finalidade, as propostas de meditação do abade Dom Bernardo Gianni têm uma frescura espiritual e um enraizamento na tradição contemplativa que as torna admiráveis. Elas testemunham bem porque é que o seu autor vem insistentemente nomeado como uma das vozes espirituais mais relevantes no contexto italiano. Bernardo Giani nasceu em Florença em 1968. É ali que faz estudos literários, especializando-se na cultura do mundo medieval e humanista, de que é um cultor apaixonado. Até aos 24 anos de idade vive como não-crente. Na noite de Natal de 1992, entra com um amigo, por curiosidade, na Igreja das Beneditinas de Rosano, a poucos quilómetros de Florença. E já não sai o mesmo. Ele descreve deste modo o que o marcou: «A perfeição da liturgia… a transparência do canto gregoriano. O que me aconteceu naquela noite foi a descoberta de uma Igreja subtraída a qualquer lógica de utilidade. Era o manifestar-se de um cristianismo não funcional… Parecia-me finalmente que fosse possível acreditar no impossível. Tudo, naquela noite, era visitado por um sentimento de gratuidade, de beleza, de pura abertura.»

Não passaram muitos meses entre essa noite e a sua entrada para o noviciado dos monges beneditinos em São Miniato. Ali, anos mais tarde, será ordenado presbítero. Em 2009, torna-se prior da comunidade e, desde dezembro de 2015, assumiu o papel de abade. Nestes anos, e muito graças à sua inteligência, sensibilidade e iniciativa, aquela comunidade monástica renovou-se, afirmando-se como um radioso ponto de referência de acolhimento espiritual, de vibrante reflexão cultural e de fé no coração da cidade de Florença.

Para o público português esta sua obra, que corresponde aos Exercícios Espirituais que pregou ao Papa e à Cúria Romana em 2019, é provavelmente o primeiro contacto com o seu pensamento. Mas estou certo de que despertará muito interesse para ontinuar a escutá-lo.

 

Abandono nas mãos de Deus
Bernardo Gianni
In “A cidade dos desejos ardentes”

O resultado de uma boa caminhada quaresmal é deixar que a mão de Deus restaure a nossa beleza. Mantenhamos a disponibilidade humilde de depositarmos nas mãos de Deus a nossa estrutura; ela, contra qualquer presunção nossa, continua a ser de barro; habitado pelo sopro de Deus, mas barro, frágil e pobre. Por fim, eis duas sugestões vindas da grande tradição dos Padres. A sua força evocativa não precisa de quaisquer comentários. Sei que vos incomodo com a penitência da escuta, mas de resto, estamos numa caminhada quaresmal. As palavras de Ireneu são demasiado belas para não vo-las propor:

«Como poderás ser Deus se ainda não te tornaste homem? Como poderás ser perfeito, se acabaste de ser criado? […] Antes de mais, deves cuidar da tua condição de homem, para depois participares da glória de Deus. Porque não és tu que fazes Deus, mas é Deus quem te faz a ti. Se, portanto, és obra de Deus espera pela mão do teu Artífice que faz todas as coisas em tempo oportuno [...]. Apresenta-lhe o teu coração dócil e maleável e conserva a forma que o Artista te deu, retendo a Água que vem dele para não recusares, endurecendo-te, a forma que os seus Dedos te dão. Conservando esta conformação subirás à perfeição e a arte de Deus esconderá o barro que está em ti; a sua Mão criadora revestir-te-á de ouro puro e de prata por dentro e por fora; adornar-te-á tão bem que o próprio Rei ficará cativo da tua formosura. Mas se te endureceres e recusares a sua arte e te mostrares ingrato para com ele por te ter feito homem, com a tua ingratidão para com Deus perdes, ao mesmo tempo, a sua arte e a vida: fazer é próprio da bondade de Deus, e ser feito é próprio da natureza do homem. Se, portanto, lhe confiares o que é teu, ou seja, a fé nele e a submissão, receberás a sua arte e serás obra perfeita de Deus».

Eis aqui o programa completo da Quaresma: «Fazer é próprio da bondade de Deus, e ser feito é próprio da natureza do homem.» Este «passivo» é teológico e antropológico, em simultâneo: «Ser feito é próprio da natureza do homem.»

Igualmente belo é outro texto, de Agostinho, que nos recorda o que é a verdadeira beleza e como devemos acolhê-la. O Bispo de Hipona, comentando uma passagem cheia de verdade da Primeira Carta de São João (4,19), recomenda-nos:

«“Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro.” Que fundamento teríamos para amar se Ele não nos tivesse amado primeiro? Amando tornámo-nos amigos, mas Ele amou-nos quando ainda éramos seus inimigos, para fazer de nós amigos. De novo, o primado de Deus, a anterioridade da sua ação, o nosso ser amados, ser feitos, ser adornados com a sua beleza. Amou-nos primeiro e deu-nos a capacidade de o amar; ainda nós não o amávamos; amando-o, tornamo-nos belos».

 

A paixão do belo

Eis a perspetiva com que devemos voltar a falar de beleza à nossa gente. O nosso mundo presta muitíssima atenção às aparências; a beleza é, atualmente, quase o único critério com que os jovens se aceitam a si mesmos e aos outros. Portanto, a nossa palavra – também, pastoral – deve evocar esta dimensão, radicando-a, porém, profundamente no sopro amoroso que o homem sozinho não pode dar a si mesmo, que só a graça restitui – deveis ter ouvido esta expressão, que faz sorrir, mas que indica os recursos com os quais presumimos conseguir derrotar o tempo – como restauração mais eficaz do que todos os cremes antienvelhecimento. (…)

Voltemos a Santo Agostinho:

«A nossa alma, ó irmãos, é feia por culpa do pecado: mas torna-se bela amando a Deus. Que amor torna bela a alma que ama? Deus é sempre beleza, nele não há deformidade ou alteração. Amou-nos primeiro, ele que é sempre belo, e amou-nos quando éramos feios e deformados. Não nos amou para nos mandar embora, feios como éramos, mas para nos mudar e tornar-nos belos. De que modo seremos belos? Amando-o a Ele, que é sempre belo».

Agostinho, de resto, reconhece que o Senhor Jesus, para nos dar a sua beleza, fez-se inclusivamente feio: fê-lo na cruz, aceitando a dilaceração do seu corpo fortemente pressagiada e profetizada por Isaías: «Ele já não tinha beleza nem formosura», ouviremos na Semana Santa. Agostinho tem uma passagem teológico-antropológica que só a sua grande força retórica podia elaborar, para consolação dos nossos corações. Diz ele: «Deus fez-se disforme – deformis – para nos dar a sua dei formitas», a possibilidade de uma res tauração radical. Aceitou a deformidade para nos restituir aquela mesma conformação à vida e à beleza divina que Deus Criador havia sonhado desde o início da criação.

Concluo com mais uma reflexão sobre a medida. A medida restitui-nos um ethos marcado pela paixão pelo belo, pela consciência da nossa pequenez (que a humildade nos faz redescobrir) e, ao mesmo tempo, da imensa responsabilidade que temos na nossa ação eclesial, humana. Quem tem um ministério vocacional e, simultaneamente, artístico, tem-no para tirar o pó e as cinzas deste mundo, restituindo-o à sua beleza autêntica. O Papa emérito Bento XVI, no discurso ao Colégio dos Bernardinos de Paris, a 12 de setembro de 2008, em que reflete sobre a grande tradição e contributo da cultura monástica, alerta-nos:

«Este ethos deveria incluir a vontade de fazer com que o trabalho e a determinação da história por parte do homem sejam uma colaboração com o Criador, haurindo dele a medida. Onde falta esta medida e o homem eleva-se a si mesmo a criador deificado, a transformação do mundo pode facilmente desembocar na sua destruição».

São estes os grandes riscos que, de muitos pontos de vista – cultural, político, moral, estético, ecológico –, o nosso planeta corre; e é precisamente por isso que um testemunho cada vez mais sincero de beleza e de esperança, que o nosso ser Igreja pode, por graça de Deus, dar como serviço ao mundo inteiro, surge, de facto, como uma fronteira de missão imprescindível e urgentíssima.


 

Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 08.10.2023

 

Título: A cidade dos desejos ardentes
Autor: Bernardo Gianni
Editora: Paulinas
Páginas: 152
Preço: 12,00 €
ISBN: 978-989-673-730-6

 

 
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