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A instrução e a cultura de Jesus

Uma pergunta que certamente assoma à mente de quem se encontra com Cristo – nem que seja apenas por curiosidade – diz respeito ao seu grau de instrução. As interrogações, a meu ver, poderiam ser duas: Jesus sabia ler e escrever? Que língua ou que línguas falava?

À primeira pergunta poderia parecer fácil responder, alegando três passagens do Evangelho. A primeira está no relato da adúltera perdoada, que hoje se encontra no início do capítulo 8 de João, mas que originalmente não fazia parte do quarto Evangelho, constando dos manuscritos mais antigos (alguns colocam-no em Lucas). Nele se diz por duas vezes que, enquanto os acusadores da adúltera rodeavam Jesus e a mulher, «Ele pôs-se a escrever com o dedo na terra» (8,6.8). O verbo grego utilizado é katagraphéin, ou seja, «escrever em baixo».

Pondo de parte interpretações fantasiosas (os pecados dos acusadores, a sentença subsequente ao perdão, a passagem de Jr 17,13: «Os que de ti se afastam serão escritos na terra», etc.), como escreve Raymond E. Brown no seu importante comentário a João, «a possibilidade de longe mais simples é que Jesus estivesse apenas a traçar linhas na terra para manifestar a sua falta de interesse ou a sua repugnância frente ao zelo excessivo dos acusadores». O texto, portanto, não nos diz nada a respeito da alfabetização de Jesus. Vemos, porém, ainda no quarto Evangelho, a notícia da reação dos judeus que, por ocasião da festa das Tendas, ficam estupefactos com a cultura religiosa de Jesus: «Como é que Este conhece as Escrituras, se não estudou?» (7,15).

Vendo bem, a expressão grega utilizada, grammata óiden («conhece as Escrituras»), também pode significar «sabe ler». De qualquer modo, é claro que o contexto nos leva a considerar que os ouvintes se admiram com o conhecimento teológico de Cristo, não obstante Ele nunca ter estudado com algum rabino famoso, ou numa escola rabínica. Indiretamente, admite-se a sua capacidade de abordar os textos bíblicos e, portanto, um certo grau de instrução.



No antigo Próximo Oriente (mas por vezes também nos nossos dias), um homem podia tornar-se mestre, mesmo sendo analfabeto, devido à fertilíssima memória e, portanto, ao ensino oral



Chegamos, assim, ao terceiro texto, desta vez de Lucas, que parece dar resposta à questão. Jesus entrou em dia de sábado na sinagoga de Nazaré «e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim […]. Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se» (4,16-20).

Muitos exegetas hesitam em utilizar esta passagem, porque lhes parece ser uma reelaboração de Lucas – o discurso de Nazaré tem para Lucas a mesma importância do sermão programático da montanha, para Mateus – a fim de ilustrar e exaltar a pregação de Cristo e a sua respetiva rejeição. Nós, porém, estamos convencidos de que se pode tratar de uma tradição histórica independente de Marcos e de Mateus: seja como for, Lucas estava convencido de que Jesus sabia ler.

Chegados a este ponto, levanta-se a pergunta: onde é que Ele teria estudado? Porventura Nazaré não era uma aldeia insignificante da Galileia, da qual «não podia vir nada de bom» (Jo 1,46), uma aldeia tão obscura que era ignorada pelo Antigo Testamento e pelo historiador do século I, Flávio Josefo?

Ora, por si só, no antigo Próximo Oriente (mas por vezes também nos nossos dias), um homem podia tornar-se mestre, mesmo sendo analfabeto, devido à fertilíssima memória e, portanto, ao ensino oral. Todavia, atendo-nos a uma investigação conduzida em 1976 por Shmuel Safrai, Education and the Study of the Torah, já no século I, em todas as aldeias, graças à obra de dois personagens – Simeão ben Setah (século I a.C.) e Josué ben Gamala (sumo sacerdote em 63-65 d.C.) –, tinham sido instituídas «escolas do Livro» (bet ha-sefer), ou seja, escolas elementares para a aprendizagem da leitura das Escrituras, ligadas às sinagogas. Se o rapaz fosse muito inteligente, depois dos doze anos, podia passar à bet ha-midrash, uma escola superior, gerida por um rabino nos centros mais importantes: é óbvio que a esta só podiam aceder aqueles que também tivessem uma certa disponibilidade económica.



Não se exclui a hipótese de que, além da inteligência e da genialidade do Jesus histórico (não abordamos aqui a dimensão transcendente), também tivesse havido o empenho de José, que, além de ensinar a sua arte e a sua cultura religiosa, quis que o seu «primogénito» recebesse uma instrução superior



Embora se discuta a efetiva difusão de escolas sinagogais pela Palestina, é provável que Jesus tenha aprendido precisamente numa delas a leitura das Escrituras (Nazaré, que então contaria cerca de dois mil habitantes, possuía certamente uma). Uma rudimentar instrução «laica» era depois oferecida pelo clã familiar, ou seja, as crianças eram ensinadas a fazer contas e a assinar contratos. Há que sublinhar ainda um dado muito importante, que envolve desde já a resposta à segunda pergunta. Conhecem-se muitos targumim, ou seja, traduções-paráfrases da Bíblia hebraica em língua aramaica: a ajuda ao aprofundamento das Escrituras era dada na sinagoga, precisamente por estes textos, que traduziam não só o hebraico bíblico na língua falada, o aramaico, mas que também o explicavam e o atualizavam.

É verdade que Jesus, além de conhecer a Bíblia, graças a essa informação de base, revela ter adquirido uma perícia teórica e prática mais qualificada: todas as tradições evangélicas o mostram envolvido em disputas eruditas, não só bíblicas, mas também jurídicas, e atestam que lhe era reconhecido, embora informalmente, o título de rabino, e a possibilidade de intervir na sinagoga com autoridade. Não se exclui a hipótese de que, além da inteligência e da genialidade do Jesus histórico (não abordamos aqui a dimensão transcendente), também tivesse havido o empenho de José, que, além de ensinar a sua arte e a sua cultura religiosa, quis que o seu «primogénito» (Lc 2,7) recebesse uma instrução superior nalguma outra escola, aos pés de um rabino. Sobre este ponto, porém, só podemos alvitrar hipóteses.

Eis-nos chegados, então à outra interrogação: que língua ou que línguas falava Jesus? Na Palestina do século I, havia quatro línguas em vigor. O latim era utilizado apenas pelos funcionários e pelos oficiais romanos estacionados em Cesareia Marítima e nos centros mais importantes (sobretudo em Jerusalém e na Samaria). No Império Romano, o grego era uma espécie de língua franca, semelhante ao atual inglês: os próprios judeus, não obstante a reação dos Macabeus, muito apegados à preservação da língua e das tradições dos antepassados, foram progressivamente obrigados a usá-lo, sobretudo por parte das classes altas e burguesas, mas também ao nível mais baixo, por razões políticas e económicas. Tratava-se, de qualquer modo, de um conhecimento muito diversificado entre a cidade e o campo, e muitas vezes muito simplificada e aproximativa, tendo por finalidade as transações comerciais e algumas relações com o estrangeiro.



Na qualidade de mestre que se dirigia à massa dos camponeses judeus comuns, cuja língua quotidiana era o aramaico, Jesus falava e ensinava quase necessariamente aos seus correligionários em aramaico, alguns vestígios do qual ficaram gravadas no texto dos nossos Evangelhos gregos



Havia, além disso, o hebraico, então em crise, mas bastante conhecido, graças à leitura da Bíblia, como atrás dizíamos. Alguns grupos nacionalistas (zelotas) ou ortodoxos (Qumran e estudiosos da Tora) também o utilizavam nos seus escritos. Por fim – como já referimos – havia o aramaico, a língua comum quotidiana, a partir do pós-exílio, com notáveis variantes e evoluções, sendo por isso difícil definir com exatidão o modelo linguístico aramaico do século I na Palestina, que registava diferenças, inclusive regionais (Pedro é reconhecido como galileu pela «sua maneira de falar», durante o processo judaico contra Jesus: Mt 26,73). Como dizíamos, eram importantes os targumim, que explicavam o texto bíblico em aramaico. Nos Evangelhos, escritos em grego, afloram vários aramaísmos, como «nos perdoas as nossas dívidas» (só em aramaico é que o pecado é chamado «dívida»), ou verdadeiras citações aramaicas: Talitha qum, «Menina, levanta-te!», dirigida à filha de Jairo (Mc 7,34), Abbá (Mc 14,36), effatha, «Abre-te!», dirigida ao surdo (Mc 7,34), Eloí, Eloí, lemá sabachtáni, «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mc 15,34).

A partir de agora, deveríamos tirar as conclusões devidas para responder à nossa interrogação linguística sobre Jesus. Ele vivia num país quadrilingue, mas com diversas e claras gradações. Não há razões para crer que conhecesse o latim, utilizado quase exclusivamente pelo poder ocupante. É provável que tivesse um deficiente e reduzido conhecimento do grego, por alguns contactos com os pagãos presentes na Terra Santa (recordemos o diálogo com Pilatos) ou com hebreus da diáspora de visita a Jerusalém (ver Jo 12,20 e At 6,1-15). Como escreve John P. Meier, no primeiro dos quatro volumes intitulados “Um judeu marginal” (1991 [1992]), «a sua ocupação como carpinteiro, em Nazaré, e o seu itinerário, na Galileia, circunscrito a cidades e aldeias decididamente judaicas, não exigiria fluência e regularidade no uso do grego».

Quanto às outras duas línguas, o mesmo estudioso americano observa:

«No que diz respeito ao hebraico, Jesus poderia tê-lo aprendido na sinagoga de Nazaré ou numa escola vizinha e, provavelmente, tê-lo usado, por vezes, enquanto discutia sobre a Escritura com escribas e fariseus. Todavia, na qualidade de mestre que se dirigia à massa dos camponeses judeus comuns, cuja língua quotidiana era o aramaico, Jesus falava e ensinava quase necessariamente aos seus correligionários em aramaico, alguns vestígios do qual ficaram gravadas no texto dos nossos Evangelhos gregos. Tratar-se-ia de uma variante galileia do aramaico ocidental, que se distinguia por algumas palavras e usos linguísticos do aramaico falado na Judeia […]. Num país quadrilingue, Jesus era um hebreu de facto bilingue, mas provavelmente não terá sido um mestre trilingue».


 

Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Quem és Tu, Senhor?, ed. Paulinas
Imagem: D.R.
Publicado em 01.03.2019 | Atualizado em 07.10.2023

 

 
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