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A poesia como rebelião em José Tolentino Mendonça

Estrangeiros, sempre. Mesmo se falamos a língua do país onde nascemos, mesmo se o registo civil e o certificado de residência fazem coincidir passado e presente. Há uma estranheza no mundo e a nós próprios que não podemos ignorar: é o que nos recorda a subtil inquietação do rosto ao mesmo tempo conhecido e desconhecido que nos fixa no espelho, a cada manhã. E o facto, cada vez mais objetivo à medida que a existência avança e se faz história, de que na vida as contas nunca batem certo; as variáveis impossíveis de prever fazem parte integrante da tapeçaria, aliás, formam-lhe a urdidura, a base necessária ao bordado.

“Estranei alla terra” (Estranhos na terra), (ed. Crocetti, 2023, 180 páginas, tradução do português de Teresa Bartolomei, prefácio de Alessandro Zaccuri) apresenta ao leitor italiano duas recolhas de versos de José Tolentino Mendonça – cardeal, prefeito do novo Dicastério para a Cultura e a Educação –, “A estrada branca” (de 2005) e “Teoria da fronteira” (de 2017).

A poesia é uma forma de apostasia, escreve Tolentino, uma profissão de incredulidade na omnipotência daquilo que é visível; uma forma de rebelião contra a banalidade e a superficialidade com que vemos as coisas. Um ponto de resistência (…) que se dá a entrever de fugida, mas que nos acompanha sempre. Intersectamo-lo pelo canto do olho, fala-nos pelos cartazes que vemos pelas estradas, pelos anúncios publicitários que nos seguem enquanto conduzimos no trânsito. Intuímos-lhe os contornos em contraluz, na circunstância fugidia mas real que atravessamos, como emerge em “Óstia”, uma das composições de “A estrada branca”, onde um contratempo se torna ocasião de encontro. «Um desses atrasos no aeroporto de Fiumicino / e eis-nos em salto desprovido por estas ruas / além do parque arqueológico / a cidade assemelha-se a um acampamento desolado / varandas cheias de caixotes e detritos / (devem ser exíguas as casas económicas) / muros com imprecações aos de Roma / e a débil força messiânica entregue / aos ídolos do futebol // Sem darmos conta já estávamos encalhados / numa qualquer estrada secundária / junto a um matagal circundado de rede / onde um letreiro quase ao acaso / diz ter morrido / Pier Paolo Pasolini».



O mar imenso, sem fronteiras e sem margens, imagem de um conhecimento afetivo, imersivo, porque os conceitos criam os ídolos, só o espanto conhece, como gostava de dizer Gregório de Nissa. Uma regra que vale sempre, também na poesia



A poesia segue as premissas da guerrilha urbana, sublinha Tolentino, «jamais revela identidade e endereços (…). Não permite a ninguém conhecer a globalidade dos elementos em campo». É quando pensamos que conhecemos completamente alguma coisa, esgotando as suas possibilidades, que devemos verdadeiramente preocupar-nos, porque se trata de uma confortável ilusão. «Não ames as viagens que reduzam a estranheza/ não te desloques a lugares/ dos quais já existam relatos / a tradição não diz muito afinal / e os livros só remotamente indiciam o espanto / em que se entra de olhos fechados // a terra é desde sempre incógnita e perplexa / e se regressares a ela escutarás / o que não ouviste / da primeira vez».

Em “As viagens”, a «primeira vez» é o último verso da poesia, deixa ao leitor uma espiral de possibilidade, como uma fresta a atravessar. Não é uma condenação, a profundidade insondável do real, mas um dom: torna possível, em cada momento, a frescura da primeira vez, a possibilidade de uma alegria sempre nova (…). O importante é não esquecer-se disto na vida de todos os dias, nota Tolentino em “Aviso para colar na porta do frigorífico”: «Perde o fôlego seguindo a nuvem / quando restar dela uma cor apenas / espante-te ainda sua vontade / de recomeçar vezes sem fim // as multidões entretêm-se / com milagres que ocorrem / nos livros de contabilidade / tu ao contrário procura / estrelas distintas / que arrastem às sacudidelas / o peso do teu arado».



«não voltes a perguntar a cotação / ou o preço a atribuir / deixa que o amor te torne / um estranho no mundo // as crianças que escutas / em algazarra no cimo das rodas / sabem que de qualquer ponto / se avista o mar / o mar como existia / antes da primeira jangada»



O título da (belíssima e musical no original lusitano) “Compaixão” - poderia ser um outro “post-it” a inserir no placar dos avisos - ecoa de maneira mais explícita o evangélico «se não vos tornardes como crianças», de Mateus 18, 1-5: «À entrada da noite quando as tuas provisões / estiverem prestes a cair / um anjo descerá a teu lado / os degraus de Micenas / e te falará do extremo amor / através do qual tudo / se transforma // não voltes a perguntar a cotação / ou o preço a atribuir / deixa que o amor te torne / um estranho no mundo // as crianças que escutas / em algazarra no cimo das rodas / sabem que de qualquer ponto / se avista o mar / o mar como existia / antes da primeira jangada»

O mar imenso, sem fronteiras e sem margens, imagem de um conhecimento afetivo, imersivo, porque os conceitos criam os ídolos, só o espanto conhece, como gostava de dizer Gregório de Nissa. Uma regra que vale sempre, também na poesia.

«Tenho amigos que rezam a Simone Weil / Há muitos anos reparo em Flannery O’Connor // Rezar deve ser como essas coisas / que dizemos a alguém que dorme / temos e não temos esperança alguma / só a beleza pode descer para salvar-nos / quando as barreiras levantadas / permitirem / às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos / integrar o magnífico / cortejo sobre os escombros».

Um magnífico cortejo, que nem a força destrutiva do mal consegue travar; uma imagem que regressa igualmente no luminoso “Ziw”: «A vastidão avança por aquilo de que falamos / evoca o que o tempo nos aconselha / (…) / um milhão de cintilantes lanternas de papel / sobre o rio / e a alma repete a pergunta eterna».


 

Silvia Guidi
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Capa (det.) de "Teopria da fronteira", ed. Assírio & Alvim
Publicado em 25.10.2023

 

 

 
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