Os humanistas
A revista "Vanity Fair" revela no último número uma história admirável. Segundo Suzanna Andrews, autora do artigo, Arthur Miller notabilizou-se nos palcos com peças pungentes sobre a responsabilidade pessoal perante terceiros. Mas o mesmo Miller que pregava "humanismo" em público achou por bem não se incluir no rebanho: em 1966, quando nasceu o quarto filho com síndrome de Down, Miller enfiou-o em instituição psiquiátrica, apagando o "embaraço" da sua vida oficial. Só no fim, por razões que a razão desconhece, o pai concedeu a Daniel (eis o nome) um quinhão testamentário. Foi através desse gesto terminal que o mundo ficou a conhecer que afinal havia outro.
O caso seria propício a indignações morais que, na verdade, seriam uma imitação do "humanismo" artificial de Miller. Não vou por aí. Até porque o fenómeno não é propriamente original: Rousseau, um declarado amante da Humanidade (com maiúscula), não hesitou em enfiar os cinco filhos na roda. Sobra, porém, uma questão: a hipocrisia de um autor retira à obra a sua autonomia "estética"? A resposta instintiva seria dizer que não. Hoje, tenho dúvidas. Eu não peço que um génio seja um beato. Mas agradeço que um canalha não use a arte para me dar lições de moral. O bem e o belo nem sempre batem na mesma tecla? Facto. Mas convém não levar demasiado longe essa divisão entre a ética e a estética. Caso contrário, ainda acabamos a elogiar a belíssima arquitectura das câmaras de Auschwitz.
João Pereira Coutinho
in Expresso, 22.09.2007
Publicado em 24.09.2007
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