Vemos, ouvimos e lemos
Pintura

Ilda David'

“Pentateuco” é o título da exposição de pintura de Ilda David’ que o Núcleo de Arte Sacra do Museu Carlos Machado mostra, em Ponta Delgada. As pinturas resultam de uma leitura dos cinco primeiros livros da Bíblia e revelam o que uma leitura pode ser: revisitação, surpresa, conhecimento, mistério. A exposição prolonga-se até ao dia 31 de Outubro.

 

A pintura sonora

INa pintura de Ilda David’, nas práticas desse extraordinário mundo, há um silêncio intrínseco e irreversível: o silêncio da leitura. Como outros pintores escolhem avizinhar-se da escrita, copiando ou refazendo diligentemente uma caligrafia, e vendo nela o indício dos da sua espécie, Ilda poderia dizer, cum libellis loquor, «converso com os livros». Com os de São João da Cruz, de Goethe, T.S.Eliot, Maria Gabriela Llansol. Mas também com incunábulos litúrgicos, volumes de iluminuras, herbários, opúsculos de errâncias recônditas, descrições de mitos, poemas, tratados. O que me fez primeiro amar a pintura de Ilda David’ foi a coincidência com a anotação de Maître Eckhart: «não existe maior obstáculo à união com Deus que o tempo». A sua é uma conversa sem tempo, uma comunicação de estados mais do que palavras, um entrelaçar espaçado da corda que se diz prender-nos à vida.
 
Há um momento em que, conversando com os livros, lhe acontece chegar à Bíblia, como a viajantes ocorre percorrer enclaves, covas e flancos a cujo apelo não puderam resistir ou desembarcar em baías que ainda não existem. É curioso que antes desse nome de origem grega, o corpus literário sagrado chamou-se Miqra, termo hebraico para leitura. A Bíblia foi leitura antes de ser livro. A obra de Ilda David’ dá-nos sinónimos: pelas suas frestas, sem reparos, a revelação de um silêncio que corre.

Alguma da filosofia mais iluminante do século que passou, ainda tão presente, não desejava outra coisa que ser conversa, comentário, leitura, cotejo. Levinas publicou mesmo as suas lições talmúdicas, mas Rosenzweig, Buber, Scholem, Benjamin foram o quê senão rabinos sagazes? 

Mas talvez nos seja necessário ir recuando. «Não existe maior obstáculo à união com Deus que o tempo». Tanto a hermenêutica medieval judia como a cristã construiram itinerários minuciosos para a leitura, que, repentinamente, ganhava sentidos, vias ínvias de acesso, desdobramentos. Os mestres judeus falam do sentido simples da leitura (pchat), mas também daquele alusivo (rémez), do interpretativo (drach), e ainda do secreto (sod). As quatro consoantes iniciais formam o termo pardès que significa paraíso: o lugar da leitura. Por sua vez, os leitores cristãos medievais dividiam-se: uns, para seguir Orígenes e Jerónimo, retinham a tricotomia (leitura histórica ou literal; tropológica ou moral; mística ou alegórica), outros assentiam nas quatro distinções de Cassiano e Agostinho (o sentido histórico da leitura; o alegórico; o tropológico e o anagógico ou escatológico). Esta última doutrina seria resumida no famoso dístico: Littera gesta docet; quid credas allegoria; moralis quid agas; quo tendas anagogia (a letra ensina os acontecimentos passados; a alegoria desvela o conteúdo do que crês; o sentido moral ilumina o modo como convém agir; a anagogia esclarece o objecto da esperança). Eis os fundamentos da leitura infinita.

Mais atrás, a Platão devemos o sintagma tantas vezes reproposto, «a beleza é o esplendor da verdade», e aí podemos ver também leitura e conversa, meditação. No mundo antigo, o estatuto da beleza é deslocado do mero plano estético e imanente. De uma poética da imitação sonda-se uma poética da presença, que é mysterium tremendum, não só invisível, mas infigurável: o mistério da própria verdade. A Patrologia Oriental, devotada a esclarecer a função teofânica do ícone, operará, desenvolvimentos que ninguém presumia, tomando o paciente e austero caminho da negação. Denuncia-se a pretensão do visual e do sensitivo (isso que em grego se diz fantasia), pois a pintura pela pintura redunda em fetiche, para relevar uma experiência que os sentidos não podem circunscrever e que permanece inexprimível. Na leitura apofática, cultivada por leitores tão extraordinários como Palamas, Gregório de Nissa, Damasceno, Basílio ou Dionísio o Areopagita, o informulado pode, no entanto, ser lido e contemplado. «Felizes os vossos olhos, porque vêem», garante a dado passo a Escritura. A leitura não apenas vente, mas vidente.

Cum libellis loquor, «converso com os livros». Na belíssima sala do Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, a pintura de Ilda David’ conversa com o Pentateuco. Não foi há muito tempo que, por um desses acasos que tornam a nossos olhos o mistério flagrante, se encontrou uma cópia desse livro, uma página vertiginosa, onde os caracteres hebraicos soletram, como num antifonário, a música do ensinamento, a Torah. Ao lado dela, como num comentário, dispõem-se as imagens. Os contornos tornam-se próximos. As Tábuas da Lei e as Tábuas da iconógrafa. Ambas têm cores incendiadas, jubilatórias. Longe das mediações intermédias, buscam o cromatismo pleno. A sua radiação abre-nos, ao mesmo tempo, ao invisível e ao ilegível. A pintura já não é apenas matéria plástica: tornou-se sonora. Tornou-se leitura.

José Tolentino Mendonça

(Texto que acompanha o catálogo da exposição)

Publicado em 11.10.2007

 

 

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