Vemos, ouvimos e lemos
António Marujo

Religião e media: equívocos e possibilidades

Começo por enunciar duas premissas: 1) o jornalismo português revela muita ignorância e preconceito em relação ao fenómeno religioso; 2) as instituições religiosas continuam a encarar os media com desconfiança e a não entender o fundamental da linguagem jornalística nem os desafios colocados pelos últimos avanços tecnológicos.

Dito assim, estou a esquecer a metade cheia do copo: nas últimas duas décadas, deram-se passos muito importantes na aproximação mútua entre o religioso e os media. Falando de Portugal: logo após a Revolução de 25 de Abril de 1974, o processo político e as tensões sociais tiveram a primazia nos noticiários, relegando o fenómeno religioso para segundo plano. A nova experiência que o país vivia ditava o tema dominante. Mas havia outra razão para essa marginalidade do religioso no espaço mediático: em muitos jornalistas, vivia ainda a memória de uma hierarquia católica demasiado silenciosa ou silenciada em relação ao regime do Estado Novo (1928-1974).

Desde finais da década de 80 o panorama mudou. Mudou com o “Público” na imprensa, e também com experiências como a TSF na rádio ou as televisões privadas. O facto de diversos media começarem a ter um olhar mais profissional sobre o fenómeno religioso obrigou as instituições religiosas – nomeadamente a Igreja Católica, em diversos âmbitos – a olhar para a comunicação social de modo diferente.

A mudança, mais lenta, também aconteceu no interior dessas instituições: apesar de respostas por vezes incipientes, foram aparecendo pessoas disponíveis para responder, porta-vozes oficiais, meios próprios de comunicação (o ponto alto é a criação da agência Ecclesia). Mas o caminho não foi fácil. Recordo-me de situações em que um importante porta-voz só estava disponível entre as 9h e as 9h30 da manhã. Mesmo que as notícias acontecessem depois dessa hora, só se poderia ter o comentário no dia seguinte.

Apesar dos pequenos passos, muitas das atitudes fundamentais mantêm-se. O preconceito, a ignorância, a desconfiança e o medo são mútuos. É verdade que a situação não é muito diferente por essa Europa fora e isso traduz, em grande medida, um problema cultural cuja análise mereceria aprofundamento – mas que não cabe agora aqui. Antes de entrar nessa verificação, gostava de trazer para o debate outras questões que dizem respeito a algum do jornalismo que se faz actualmente. Refiro-me à ausência de capacidade crítica e à dominância da linguagem televisiva.

 

i - Ausência de capacidade crítica perante os verdadeiros poderes

Temos todos a ideia que os media concretizam, numa sociedade, a liberdade de expressão. Será que este postulado ainda é verdadeiro? E alguma vez o terá sido? Não é este o lugar para responder exaustivamente a tais perguntas, nem para tal pretendo ter competência. Trago aqui somente um problema que se vive actualmente.

Em vários âmbitos, a comunicação social vive alguma falta de liberdade ou ausência de espírito crítico. Se compararmos o jornalismo que  actualmente se pratica em vários meios de comunicação, em campos como, por exemplo, o jornalismo político e o jornalismo económico, é muito mais fácil ver análises críticas sobre políticos do que sobre empresários ou economistas. Os políticos já não têm muito poder, por isso é mais fácil criticá-los. Os verdadeiros poderes estão, hoje, nas grandes empresas, nos economistas ou nas bolsas que decidem muito do nosso quotidiano, mesmo que disso não tomemos consciência. E a esses, que determinam as nossas vidas, os nossos empregos, os nossos ritmos, é mais difícil fazer frente. Por isso, muito do jornalismo económico que se faz, nada (ou pouco) nos diz sobre condições de trabalho em muitas empresas, sobre a verdadeira exploração a que tantas pessoas são sujeitas nos seus empregos, sobre os esquemas paralelos em que navega uma grande parte da economia. Sabemos noticiar apenas acerca de transacções entre empresas, movimentos de capitais, contratos e negócios, expansões ou encolhimentos. Estou a falar do que domina, não estou a querer referir-me a tudo o que se escreve ou faz no jornalismo económico. Mas as excepções, neste caso, confirmam mesmo a regra.

Em Portugal, este facto é agravado por um outro: a aliança do dirigismo desportivo (nomeadamente do futebol) com o poder económico. Agentes económicos, desportivos e, por vezes, políticos, confundem-se num obscuro triângulo onde muitas pessoas são trituradas em nome de interesses inconfessados. Também aqui, muito do que se diz e faz é de uma grande falta de capacidade crítica. Noticiamos tudo acerca dos treinos, das jogadas polémicas ou das declarações sucessivas, mas não ousamos enfrentar o verdadeiro poder que, no caso, o futebol, detém no país.

Provavelmente, esta menor capacidade crítica em relação a determinados poderes está também relacionada com a relativa dificuldade que os media e os jornalistas têm (temos) de se analisarem e criticarem a si mesmos. Não é estranho a isto, por exemplo, a dificuldade em aceitar o que tantas vezes escrevem os provedores do leitor – mesmo se os seus comentários são meigos. Os cidadãos, os consumidores da informação e utilizadores dos media têm também uma voz e um poder de escrutínio que deve ser aceite pelos jornalistas e pelos meios de comunicação. Mas esse exercício nem sempre é fácil.

 

II - Histórias de menosprezo, omissões e (ir)relevâncias

O que tem tudo isto a ver com a relação entre os media e o fenómeno religioso? Deve o religioso estar isento de crítica? Não defendo, obviamente, nada disso. Como quaisquer instituições sociais, as religiosas devem também estar sujeitas ao escrutínio público que uma sociedade plural implica. Mais: os próprios textos da Igreja Católica admitem a possibilidade do debate plural e a opinião pública interna: “Com a ausência da opinião pública, faltar-lhe-ia [à Igreja] qualquer coisa de vital e a culpa recairia tanto sobre os pastores como sobre os leigos”, escrevia o insuspeito Papa Pio XII, numa afirmação depois retomada por diversos textos do Vaticano (CP, 114ss). E, no campo protestante, essa pluralidade é implícita ao próprio modo de traduzir a fé.

Hoje, as instituições religiosas, como tal detentoras de poder, são como os políticos: já não podem muito. Por isso somos capazes de ter argumentos muito sérios para as criticar.

Isto não deve obstar a que se ignore o que a instituição, os seus agentes ou os seus membros fazem. O jornalismo não pode ignorar o que se passa, não pode deixar de descrever a realidade, mesmo se em parcelas, sob pena de trair um dos seus fundamentais objectivos. Mas o que acontece hoje, por vezes, é que se ignoram ou se menosprezam acontecimentos que, por serem religiosos, valem menos, nas contas mediáticas, do que outros de equivalente dimensão – desde que sejam de qualquer outro âmbito.

Alguns exemplos vêm-me à memória, retirados apenas do último ano e meio. A cobertura mediática da morte de João Paulo II e do conclave que se lhe seguiu, se pecou, terá sido pelo excesso de horas de emissão televisiva em momentos em que pouco havia para dizer. Ao contrário, a primeira viagem do novo Papa Bento XVI foi, na comunicação social portuguesa – nomeadamente nas televisões – quase ignorada. Pelos vistos, apesar do que se passou com o resto do mundo – 7000 jornalistas estavam em Colónia a cobrir o acontecimento, que mobilizou um milhão de jovens – as televisões portuguesas, talvez cansadas do esforço feito quatro meses antes, limitaram-se a pedir aos seus correspondentes mais próximos que dessem um pulo até Colónia para fazer algumas peças. A SIC completou esse trabalho com uma reportagem de um jornalista que acompanhou um grupo de portugueses, mas a cobertura televisiva foi genericamente minimalista – para ser benevolente. Longe, muito longe, das autênticas embaixadas de jornalistas e técnicos (talvez exageradas, em alguns casos) que estiveram em Roma em Abril de 2005. Ou seja, pelos vistos não interessou saber como reagiria o novo Papa perante as multidões, que diria ele na sua primeira viagem, que opções apontaria para o seu pontificado nascente. 

Falando ainda de Colónia, a revista semanal mais lida do país, a “Visão”, ficou-se por uma pequena notícia de um terço de página. Aliás, a  mesma publicação conseguiu, já este ano, reduzir a importante viagem do Papa a Auschwitz a uma notícia de meia dúzia de linhas a uma coluna. O “Expresso” também passou levemente pela primeira viagem do novo Papa e esquece muitas vezes acontecimentos importantes do âmbito religioso, mesmo internacional.

O mais grave talvez nem sejam estas omissões. Ouvi um editor de imprensa dizer que os seus camaradas de profissão enviados a Colónia estavam, pelo simples facto de cobrir o acontecimento, a “promover” o novo Papa – que, ainda por cima, é uma pessoa com “má imprensa”. Pergunto-me: quando noticiamos algo sobre um político, o nosso interesse é promovê-lo? Uma história como esta parece tão inacreditável que quase se torna ridículo trazê-la aqui…

Sobre o mesmo acontecimento de Colónia, aliás, o provedor de leitores do “Jornal de Notícias”, Manuel Pinto, escreveu, a propósito do que considerou a cobertura “deficiente” feita por aquele diário: “Não é por ser do âmbito religioso que um assunto é jornalisticamente melhor ou pior. É por ser jornalisticamente relevante.” (1) 

Há outras omissões que poderiam ser citadas como “relevantes”; cito um exemplo português: a apresentação do Relatório Mundial sobre Liberdade Religiosa, que desde há três anos é feita também em Portugal, tem merecido a omissão sistemática das televisões. Nem o facto de ter sido apresentado já por personalidades como Marcelo Rebelo de Sousa ou o bastonário da Ordem dos Advogados acrescentou, pelos vistos, qualquer grau de atracção ao assunto. Falasse Marcelo Rebelo de Sousa sobre um qualquer fait-divers no seu partido e seríamos presenteados com a respectiva notícia no serão televisivo…

 

III - Como se constrói uma agenda

Este exemplo permite passar a outra pergunta: o que será então relevante para merecer ser noticiado?

Já começámos a ver, nos últimos dias, como alguns aspectos da questão do aborto irão, de novo, ser abordados. O referendo para alargar as condições de despenalização do aborto está aí à porta e, apesar de a questão não ser estritamente religiosa, tem uma forte carga simbólica e mexe, obviamente, com convicções profundas.

O problema é este: pela enésima vez, os bispos católicos vieram dizer que a Igreja se opõe à despenalização e liberalização do aborto. Ora isto, em sentido próprio, não é notícia: notícia seria se dissessem que a Igreja é favorável à liberalização. Na minha redacção, brinco por vezes quando aparece uma qualquer declaração de um papa, bispo ou cardeal sobre o assunto. Normalmente, repetem-se na mesma recusa fundamental, variam por vezes um pouco na forma. Na maior parte dos casos, não mereceriam uma linha. Ao contrário, as tomadas de posição do Papa João Paulo II contra a invasão do Iraque eram consideradas, já à segunda declaração, como uma repetição, porque “já se sabia que o Papa era contra a guerra”, como eu ouvi a uma jornalista…

O tema do aborto serve para identificar uma face deste problema: o que nos leva a considerar que um determinado facto ou declaração é notícia e outro/a, por vezes menos conhecido/a ou menos divulgado/a mediaticamente, não o é? Porque é que determinados temas excitam tanto a paisagem mediática e o mesmo não se passa com outros igualmente (ou porventura ainda mais) importantes? Por exemplo, e para continuar só no campo católico, as sucessivas declarações de João Paulo II a pedir o perdão da dívida externa dos países do Terceiro Mundo ou o trabalho de muitos padres e freiras em instituições de apoio a doentes com sida, eram, são, muitas vezes ignoradas.

Isto acontece, com frequência, por um fenómeno de mimetismo. Faz-se aquilo que se imagina que os outros vão fazer, e muitas vezes a reboque de tremendas máquinas publicitárias ou de propaganda. O que se passou com o recente lançamento de uma ficção sobre a morte de João Paulo I é revelador: a editora começa por inundar as redacções com mensagens de correio electrónico, criando assim a impressão de se estar perante algo de verdadeiramente importante; os jornalistas sentem-se obrigados a ir ver o que é, porque “todos o irão fazer”; não existe a distância suficiente para tentar perceber se nos estão a querer vender gato por lebre; e acabamos todos por ir atrás, porque “todos” irão atrás…

Não há apenas mimetismo na forma como se constrói a agenda. Há também alguma ignorância (não sei se devo dizer preconceito) no modo    como se escolhem acontecimentos a privilegiar (e outros, logicamente, a menosprezar): uma exposição de arte pode ter 20 mil visitantes e ser considerada um êxito, se for arte contemporânea exposta numa instituição do meio; mas já não será relevante, mesmo que haja 50 mil ou 100 mil pessoas a ver, se se der o caso de ser arte… mas sacra.

O caso da Bíblia de João Ferreira d’Almeida, o texto mais traduzido de sempre em português (mais de cem milhões de exemplares em 325 anos) é também exemplar. Durante muito tempo, o país predominantemente católico ignorou ou menosprezou esse “herege” protestante que traduzira a Bíblia na longínqua Batávia, hoje Jacarta. Mas agora, que esses preconceitos já não existem, a agenda mediática continua a ignorar os acontecimentos – e são vários – ligados à relevância cultural do seu texto e à memória do seu nome. (Felizmente, a edição da sua tradução da Bíblia, com o texto fixado por José Tolentino Mendonça e ilustrado por Ilda David, poderá ajudar a reconhecer finalmente o valor desse português quase desconhecido da maior parte da população.) A importância cultural de alguém que, à semelhança do que a versão King James fez com a língua inglesa, ajudou a moldar a moderna língua portuguesa através da tradução da Bíblia, deveria merecer mais que uma rua com o seu nome, inaugurada apenas em 2006, na aldeia onde terá nascido…

A questão da relevância cultural nota-se mesmo em pequenos pormenores. Num texto sobre a escritora Flannery O’Connor, escrevia-se: “Os seus contos também podem ser lidos sem a sua chave religiosa. E devem, digo eu.” (2) Pergunto: porquê “devem”? Será que a sua chave religiosa lhes diminui o valor de “obra-prima” que logo a seguir se lhe aponta no mesmo texto? A propósito de nova edição de Decameron, de Giovanni Boccacio, também se escrevia: “Embora de inspiração cristã, o Decameron é impregnado por saborosa sensualidade pagã...” (3) O que dizer do Cântico dos Cânticos na Bíblia? Não será também “saborosa sensualidade pagã”? Não terão cristianismo e (aquilo que se chama) “paganismo” cruzado inspirações sucessivas ao longo da história?

Já que falei do protestante Ferreira d’Almeida, o desconhecimento é maior ainda quando se trata de falar de confissões minoritárias: a assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, realizada este ano no Brasil, foi ignorada pela generalidade da comunicação social portuguesa, mesmo se naquela organização estão representadas três centenas e meia de igrejas cristãs e 550 milhões de crentes. E, apesar de ter aumentado depois do 11 de Setembro o interesse pelo islão e pelo judaísmo, a ignorância sobre muitos termos e o preconceito cultural são ainda mais notórios em relação a estes credos do que em relação ao catolicismo.

 

IV - TV e agências, uma história exemplar

A sociedade mediática faz com que vivamos, muitas vezes, a experiência de serem os próprios media a formatar e a ditar os acontecimentos. O papel dos directos televisivos, por exemplo, tem sido objecto de muitos debates e reflexões, a propósito da influência, no curso de determinado acontecimento, de a televisão estar ou não presente. O discurso televisivo é o que mais influencia a relação do público com os media. A realidade é esta e não vale a pena ter a nostalgia do acontecimento puro, isento da inevitável interacção com os media – isso, simplesmente, não existe.

Também o papel das agências internacionais é fundamental, embora  não tão evidente para o grande público. Um caso recente, o da visita de Bento XVI a Auschwitz, é elucidativo, com a polémica provocada por algumas das suas declarações. O que se passou?

Às 19h01 de 28 de Maio, logo após o final da visita, uma peça da AFP (Agência France Presse) enviada de Auschwitz intitulava-se: “Bento XVI denuncia a Shoah em Auschwitz mas provoca um ligeiro mal-estar.” No   meio do texto, lê-se: “Sob anonimato, alguns [representantes de organizações judaicas] confiaram o seu mal-estar [à jornalista] quando o Papa citou João Paulo II referindo os ‘seis milhões de vítimas polacas da guerra’, sem mencionar que metade eram judeus.”

Ora, logo na frase seguinte, os “alguns” representantes judeus reduzem-se, afinal, a uma única voz, a do grande rabino da Polónia, Michael Schudrich, que afirma o seguinte: “É um discurso muito comovente, mas poderia ter havido coisas que poderiam ter sido mais fortes. Mas a sua simples presença aqui é muito importante, é um grito contra o anti-semitismo.” Como se vê, a declaração é essencialmente positiva e não há, no resto do texto da notícia, mais nenhuma declaração dos restantes “alguns” representantes. Teria ficado guardada?

Às 19h28, nova notícia. Título: “Visita histórica de Bento XVI a Auschwitz, depois de triunfo em Cracóvia”. No texto, lê-se quase no final: “Mas ele [o Papa] provocou um certo embaraço quando pareceu limpar o nome do povo alemão de toda a responsabilidade dos crimes nazis. Atribuiu-as a um ‘grupo de criminosos’ que pela demagogia e o terror ‘abusou’ do povo alemão para dele se servir ‘como instrumento da sua sede de destruição e dominação’. Sob anonimato, vários [plusieurs, em francês, que também significa muitos] responsáveis de organizações judaicas presentes no local confiaram o seu mal-estar quando o Papa citou João Paulo II referindo os ‘seis milhões de vítimas polacas da guerra’, sem mencionar que metade eram judeus”.

Às 19h50, uma notícia mais curta isola a declaração do grande rabino da Polónia, dizendo que a visita fora “um grande momento”. Às 20h56, a agência italiana Ansa fizera o trabalho de casa e já tinha ouvido o rabino de Roma, Riccardo Di Segni. A AFP cita: “A visita foi um momento histórico, com um grande discurso no início e no fim, mas problemática no seu conteúdo. O problema é o seguinte: colocou-se uma espécie de acento [tónico] sobre o problema da ausência de Deus e não sobre o silêncio do homem e sobre as suas responsabilidades.”

No dia seguinte, às 9h21, ainda a AFP cita o presidente da União da Comunidade Judaica Italiana, Cláudio Morpurgo, que confessava a sua “perplexidade” perante um discurso “um pouco redutor”.

Ou seja: mudou-se por três vezes o argumento alvo das críticas: primeiro, foi a falta de menção aos judeus entre as vítimas polacas do nazismo; segundo, a atribuição do nazismo a um “grupo de criminosos” que “abusou” do povo alemão; e terceiro, o tema do silêncio de Deus e do silêncio do homem.

Não interessa aqui se estou ou não de acordo com as palavras do Papa. Pretendo apenas dizer que, ao construir este relato do acontecimento, uma agência determinou decisivamente a forma como um aspecto da visita foi avaliado. Este relato da AFP é que foi retomado em diversos jornais e noticiários televisivos. (Reuters e AP, que também recebo, não seguiram este caminho, neste caso concreto.) Assim se condicionou, portanto, a leitura de muita gente sobre este caso.

Um caso semelhante, embora envolvido por outros factores, sucedeu com a citação sobre Maomé, no recente discurso do Papa em Ratisbona. Pessoalmente, tenho algumas (poucas) reservas à escolha feita por Bento XVI, pela delicadeza do momento político internacional que vivemos, tal como já tivera algumas (poucas) reservas em relação à publicação dos cartoons sobre Maomé no jornal dinamarquês. Mas para lá disso, atente-se em dois títulos, desta vez da Associated Press, logo após o discurso: “Papa envolve-se fortemente na controvérsia sobre o islão e a violência” (Pope weighs into controversy over Islam and violence); e “Papa convida muçulmanos para o diálogo e critica a guerra santa” (Pope invites Muslims to dialogue, slams ‘holy wars’). No Ocidente, estes títulos podem ser lidos com alguma tranquilidade; tenho-me perguntado como terão sido lidos títulos como estes na imprensa, nas televisões ou na internet em países como a Síria, a Indonésia, o Egipto… e se não terão contribuído para “incendiar” a chamada “rua árabe” – expressão também ela muito redutora e infeliz.

 

V - Trazer outras vozes

Neste ponto, gostaria de fazer uma breve referência à forma como entendo o que se passa em alguns jornais de países da Europa próximos de nós. Não me refiro à qualidade do jornalismo praticado, genericamente elevada, mas à escolha de determinados temas ou abordagens. Em Espanha e França, há uma agenda com uma forte carga ideológica: o “ABC” ou o “Figaro” publicam o que entendem ser mais simpático para a Igreja, o “El País” ou o “Libération” preferem acontecimentos mais críticos. Em Itália, o Papa e o Vaticano influenciam decisivamente o noticiário escolhido, o que lhe dá uma fortíssima carga institucional – que tem um paralelo, em menor grau, no Reino Unido, neste caso com os anglicanos. Este elemento, aliás, marca decisivamente a agenda dos media no religioso, tal como em outros campos. Ou seja, dá-se preferência ao noticiário com origem em fontes formais, esquecendo ou ignorando o que provém de fontes informais ou pessoas menos mediáticas.

Profissionalmente, não posso deixar de veicular noticiário institucional. Muita gente quer saber o que diz o Papa ou os bispos e, em menor grau em Portugal, o que faz o Conselho Ecuménico de Igrejas, o patriarca ortodoxo de Constantinopla ou o Dalai Lama. Mas, pessoalmente, considero igualmente importante revelar vozes mais desconhecidas do grande público, experiências por vezes humildes mas significativas, factos portadores de sinais de futuro ou visões alternativas na forma de viver a experiência da fé – sejam alternativas no interior do catolicismo, seja no trazer a público vozes e histórias de outros credos (protestantismo, islão, judaísmo, hinduísmo, budismo, âmbitos ecuménicos ou inter-religiosos).

Esta convicção tem um fundamento: a dimensão religiosa é fundamental no ser humano, seja pela afirmação, seja pela negação. E hoje ela continua a ser importante e decisiva na vida de muitas pessoas, mesmo se as instituições perderam capacidade de atracção ou influência. Não posso, enquanto profissional que tenta relatar e dar chaves para entender a realidade, ignorar ou menosprezar uma parcela importante dessa realidade.

 

VI - Conflito e nostalgia na relação da igreja com os media

Aqui chegado, importa referir os bloqueios que existem da parte das instituições religiosas. Comecei por afirmar que elas continuam a encarar os media com desconfiança e a não entender o fundamental da linguagem jornalística nem os desafios colocados pelos últimos avanços tecnológicos. Medo, desconfiança, o receio de ver o religioso tratado no areópago dos media, sobretudo se for de forma profissional, são atitudes que ainda dominam.

O problema é antigo: “À medida que foram surgindo e se foram difundindo os meios de difusão colectiva, a partir da segunda metade do sec. XV, os problemas foram constantes no relacionamento entre a Igreja e esses mesmos meios. E isto porque eles nascem e, sobretudo a partir do sec. XVI, desenvolvem-se frequentemente contra a Igreja, no esforço de conquistarem um espaço autónomo da esfera de influência daquela. Bastará recordar, já no sec. XIX, a encíclica Mirari vos, na qual o Papa Gregório XVI (1831-1846) punha frontalmente em causa o princípio da liberdade de imprensa. Não menos frontal foi, anos depois, o papa Pio IX, que no Syllabus afirmava que ‘a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manifestarem clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos’ produz ‘corrupção dos espíritos e dos povos’ e contribui para ‘a propagação da peste do indiferentismo’.” (4)

Há, em muitas atitudes, uma óbvia nostalgia dos tempos em que a autoridade clerical ditava regras e comportamentos e tutelava mesmo a linguagem do simbólico, das artes, da cultura, da produção intelectual.   Diria que a vontade de domínio continua presente (tal como nos políticos, nos grandes empresários ou economistas, nos patrões do fenómeno desportivo). “Na era mediática, a religião já não controla a sua própria história ou os seus próprios símbolos. (…) Hoje, o Papa não pode controlar o modo como Madonna ou Sinead O’Connor usam ou abusam dos símbolos religiosos. Os clérigos muçulmanos não podem impedir os retratos do islão que não aprovam. Ninguém consegue controlar o que os media irão cobrir, e como o irão cobrir.” (5)

Esta “moral de cautelas e, se necessário, de proibições” integra-se num quadro mais vasto de “defesa da Igreja” (diz Martinez Diez, citado por Manuel Pinto). Por isso, apesar da ruptura completa do discurso a partir do Concílio Vaticano II (no caso católico) e da consolidação do Conselho Mundial de Igrejas (protestante/ortodoxo), continuam a encontrar-se, em muitos responsáveis religiosos, “perspectivas e orientações que parecem mais condicionadas e marcadas por um certo receio e por um ‘complexo de defesa’ face ao que é entendido como ameaçador e incompreensível ou inaceitável, do que pelo esforço de discernimento e de ponderação a que o magistério [católico] permanentemente convida”.(6) 

 

VII - O tempo e a verdade, o púlpito e o areópago

Porque existe este medo? A esta pergunta, não é alheia a dimensão do tempo em que vivem estes dois mundos, religiões e media. O espaço religioso vive um tempo sem medida, que remete para a eternidade e se projecta no absoluto. Os media vivem do efémero cada vez mais efémero: o que é notícia neste instante já não o será no instante seguinte.

Também o relativo é uma noção mais próxima da comunicação social do que o absoluto. Ao tentar chegar à verdade dos factos, os media colocam em confronto as várias opiniões sobre eles; no campo mediático, todas as opiniões valem o mesmo; para o religioso, a opinião subordina-se a uma verdade, por vezes considerada absoluta.

E o que é a verdade? – perguntava Pilatos a Jesus. Porventura, o procurador romano na Palestina do século I colocou, sem o saber, uma questão central para este debate sobre os media e as religiões. Os media debatem-se com a procura da melhor verdade possível na descrição dos factos e da realidade. Mas essa aproximação nunca é perfeita: há sempre diferentes leituras possíveis, diferentes descrições dos mesmos factos, diferentes abordagens de um mesmo fenómeno. Mas neste campo poderia estar um relevante ponto de encontro entre religiões e media, mesmo se no campo religioso a verdade é identificada com os enunciados fundamentais de cada credo religioso. Nesse desejo de chegar à verdade última das coisas, nesse processo de procura pode estar um bom começo para o encontro a meio caminho.

Manuel Pinto recorda que os textos da Igreja Católica têm utilizado duas metáforas recorrentes para falar dos media: ora eles são o púlpito, ora são o areópago. “A primeira faz evocar a comunicação assimétrica, tendencialmente de sentido único, de um emissor para um conjunto de destinatários (…). O areópago, já não o ateniense, em que S. Paulo foi desafiado, mas o dos tempos modernos, transporta-nos, de algum modo, para o conceito de espaço público e para o papel que os meios de difusão nele ocupam, enquanto fornecedores de temas e de formas e enquanto evocadores / construtores do que nele ocorre.” (7)

Em muitos casos, os media continuam a ser olhados, por responsáveis e agentes religiosos, como um instrumento para a comunicação unidireccional e assimétrica, como um púlpito de formas modernas. E esse é um dos equívocos mais graves. O desconhecimento da linguagem e do tempo próprios dos media leva às situações que descrevi – do porta-voz disponível meia hora por dia, por exemplo. Mas há também um grande medo do que os jornalistas podem fazer com os acontecimentos (a falta de controlo sobre do que os media podem fazer, referida por Stewart Hoover). Recordo a história de um responsável católico a quem pedi um depoimento sobre uma notícia acerca de uma matéria por ele tutelada. Ao fim de um minuto de conversa, percebi que ele me estava a ditar um texto; disse-me que ou saía assim ou não queria que fosse publicado. Recomendei que, nesse caso, escrevesse um artigo de opinião ou uma carta.

 

VIII - A terra a contar coisas ao céu

Neste texto, parti da experiência e de situações concretas, para reflectir parcelas da realidade, com o objectivo de levantar problemas – que não o de atingir pessoas concretas. Usei, sobretudo, exemplos da Igreja Católica, tendo em conta a realidade portuguesa, mas o que digo é válido para outras realidades religiosas.

Tracei um quadro negro? Optei por me referir, aqui, a problemas sérios que existem na relação entre os media e o fenómeno religioso. Muitos dos equívocos apontados são construídos sobre o receio (o medo?) que se tem acerca do outro campo, do “adversário”.

Mas o que aqui fica dito não ignora outra realidade. Há possibilidades de encontro? Citei a busca da verdade, mas pode haver outras. Os media e as religiões continuam a ser espaço para denúncias públicas de injustiças, de problemas importantes, de graves violações de direitos fundamentais. O conhecimento da realidade é um apelo do campo religioso, a que os media dão uma resposta relevante.

Há, ainda, um fenómeno em crescimento. A internet, os blogues, os novos media, estão a mudar o jornalismo e a contribuir também para  mudar a face do fenómeno religioso. De forma ainda embrionária, é certo. Em Portugal, apesar da pequenez do país, há já pelo menos umas duas dezenas de blogues de iniciativa pessoal dedicados ao fenómeno religioso – e de estilos muito diversos. Isto significa que novas vozes acedem ao espaço público, como afirma M. Pinto, “sem o crivo da instituição ou o nada obsta de qualquer autoridade”. São vozes plurais, que afirmam, por vezes, a autogestão do modo de viver a experiência religiosa; em outros casos, dizem a sua filiação a determinada corrente ou grupo. Mas são vozes que se autonomizam e constroem novos espaços mediáticos e novos lugares da experiência do sagrado. E as instituições religiosas não despertaram ainda para os desafios que esta realidade coloca. 

Rainer Maria Rilke escreve numa das Quadras do Valais:

Aqui, a terra conta coisas
ao céu que a ouve tão bem;
lembrar-se delas está para além
desses nobres montes.
Por vezes, parece enternecida
por ser, desse jeito, assim escutada –
nesses momentos, mostra apenas a sua vida,
e não diz mais nada.

A terra a contar coisas ao céu, mostrando a sua vida e não dizendo mais nada. Que melhor forma de permitir que o encontro aconteça?

António Marujo

Jornalista do "Público"

 

Texto da comunicação feita a 23 de Outubro de 2006, no Grémio Literário (Lisboa) ao receber o Prémio Templeton de Jornalismo. Instituído pela Conferência das Igrejas Europeias (reúne protestantes e ortodoxos - http://www.cec-kek.org/) e pela Fundação Templeton (http://www.templeton.org/), o prémio distingue jornalistas que trabalham temáticas religiosas na imprensa não-confessional. O autor venceu o prémio nas edições de 1995 e 2005.

 

Agradecemos à Revista “Communio”, que publicou este texto no n.º 1 de 2007.

 

__________

 

(1) “Jornal de Notícias”, 11 de Setembro de 2005.

(2) José Mário Silva, “Diário de Notícias/6ª”, 11 de Agosto de 2006.

(3) “Diário de Notícias/6ª”, 1 de Setembro de 2006.

(4) Manuel Pinto, professor da Universidade do Minho, na revista “Theologica”, 2ª Série, n. 36 (1), 2001, pp. 59-74; texto em:
http://www.metanoia-mcp.org/documentos/manpinto/manuelpinto01.htm

(5) Stewart M. Hoover, professor da Escola de Jornalismo e Comunicação de Massa da Universidade de Colorado-Boulder, em: http://www.iscmrc.org/english/mediaage.htm

(6) Manuel Pinto, texto citado.

(7) Texto citado.

 

 

Publicado em 18.09.2007

 

 

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António Marujo
António Marujo























Recordo-me de
situações em que um importante porta-voz
só estava disponível
entre as 9h e as
9h30 da manhã
























Provavelmente,
esta menor capacidade crítica em relação a determinados poderes está também relacionada
com a relativa dificuldade que os media e os
jornalistas têm (temos)
de se analisarem e
criticarem a si mesmos

























Com a ausência
da opinião pública,
faltar-lhe-ia [à Igreja] qualquer coisa
de vital e a culpa
recairia tanto sobre os pastores como
sobre os leigos
























O que acontece hoje,
por vezes, é que se ignoram ou se menosprezam acontecimentos que,
por serem religiosos, valem menos,
nas contas mediáticas,
do que outros de equivalente dimensão
























Não é por ser
do âmbito religioso
que um assunto é jornalisticamente
melhor ou pior.
É por ser
jornalisticamente relevante























Não existe a distância suficiente para tentar perceber se nos estão a querer vender gato por lebre; e acabamos todos por ir atrás, porque “todos” irão atrás























O desconhecimento é maior ainda quando se trata de falar de confissões minoritárias























Ao construir este
relato do acontecimento, uma agência determinou decisivamente a forma como um aspecto
da visita foi avaliado. Assim se condicionou, portanto, a leitura
de muita gente
sobre este caso























Considero igualmente importante revelar vozes mais desconhecidas do grande público, experiências por vezes humildes mas significativas, factos portadores de sinais de futuro ou visões alternativas na forma de viver a experiência da fé























À medida que foram surgindo e se foram difundindo os meios de difusão colectiva,
a partir da segunda metade do sec. XV, os problemas foram constantes no relacionamento entre a Igreja e esses
mesmos meios























Há, em muitas
atitudes, uma óbvia nostalgia dos tempos
em que a autoridade clerical ditava regras e comportamentos e tutelava mesmo a linguagem do simbólico, das artes, da cultura, da produção intelectual























Ninguém consegue controlar o que
os media irão cobrir, e como o irão cobrir























O espaço religioso vive um tempo sem medida, que remete para a eternidade. Os media vivem do efémero cada vez mais efémero























No campo mediático,
todas as opiniões
valem o mesmo; para o religioso, a opinião subordina-se a uma verdade, por vezes considerada absoluta























Os media debatem-se
com a procura da
melhor verdade
possível na
descrição dos factos
e da realidade.
Mas essa aproximação nunca é perfeita: há sempre diferentes
leituras possíveis























Em muitos casos,
os media continuam
a ser olhados, por responsáveis e agentes religiosos, como um instrumento para a comunicação unidireccional e assimétrica, como um púlpito de formas modernas. E esse é um dos equívocos mais graves























Há possibilidades de encontro? Citei
a busca da verdade,
mas pode haver outras.
Os media e as religiões continuam a ser espaço para denúncias públicas de injustiças, de problemas importantes,
de graves violações de direitos fundamentais




















Em Portugal, apesar da pequenez do país, há já pelo menos umas duas dezenas de blogues de iniciativa pessoal dedicados ao fenómeno religioso – e de estilos muito diversos

















Com a Internet e os blogues, novas vozes acedem ao espaço
público sem o crivo da instituição ou o
nada obsta
de qualquer
autoridade

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